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Ela não significa nada. Foi apenas uma relação passageira, tão rápida que mal a reconheci. É assim que você tenta explicar quem é aquela mulher cujos olhos brilhavam quando passou e falou com você.

Felizmente, quem estava ao seu lado na ocasião ficou mais interessada em olhar a silhueta para depois perguntar se “ela era gorda assim” quando vocês namoraram. Mas não foi namoro, apenas um deslize afetivo, nem há de se lembrar. De repente, até se acredita na história.

E pela porta do restaurante ela se vai. O mesmo restaurante que vocês tanto frequentavam. O mesmo que, um dia, alguém disse ser a marca registrada do relacionamento de vocês, quase a segunda casa. O que mais poderia ser dito?

Você poderia pedir para ser esfolado e morto. Bastava dizer que pela porta saiu a única mulher que fez diferença de verdade. A mulher que você penhorou a alma ao diabo achando que seria a mãe dos seus filhos. Findo o contrato, ele veio cobrar das mais variadas maneiras e por tempo infinito: noites insones, relacionamentos falidos, corações partidos, parentes esquecidos, trabalhos perdidos.

Pequenas mentiras podem até ser saudáveis, desde que morram ali. As pessoas acreditam em pequenas mentiras, cientes que podem evitar grandes estragos.

Qualquer um passa incólume com uma história dessas. Afinal, se todos nós cometemos deslizes relacionais, é natural que, para outrém, aquela mulher possa ser um dos seus descuidos do passado. É um história pontual, fácil de contar, a vida segue e a cerveja desce.

Difícil é passar incólume quando uma foto dela cai de um livro na estante.

Folhas viradas – O argumento da relação passageira ruiu. Assim como rui qualquer argumento quando encontram uma foto perdida entre as páginas dos seus livros. Por mais que seja verdade, e geralmente é, o fato de você sequer lembrar que havia uma foto perdida dentro de um livro de Gabriel Garcia Marquez, lido há tantos anos, não facilita nem um pouco.

Dizer que jogou tudo fora, não sabe como aquilo foi parar ali, só vai piorar. Nem as grandes verdades conseguem apagar uma pequena mentira.

Como o diabo é tinhoso e primo de Murphy, sempre pode piorar. É a sua insegurança de não saber se há marcas passadas em outros livros. Você não os folheia há anos, como saber? E aquela gaveta, a única gaveta fechada a chave do seu apartamento, por causa de documentos e cartões de crédito? Será que não esconde uma foto de vocês dois juntos, felizes? É o primeiro pensamento a vir à mente da mulher a sua frente. O primeiro de uma centena.

É comum se ver num caminho sem saída: esquecer esse dia e viver em eterna insegurança ou vasculhar a casa para ter certeza que aquela foto – e “aquela sirigaita” – não é mais importante para você. Em ambos os caminhos, nada volta a ser como antes.

E quando ela bate a porta da sua casa e vai embora, com raiva e com razão, você não sabe do que tem mais medo: de que ela não volte ou de que você não volte. Não volte a ter noites tranquilas de sono e não pensar se ela, o fantasma da foto, está mesmo tão feliz quanto disse que estava. Porque você tem certeza que não está, mas sempre preferiu acreditar no contrário.

Cães e gatos – Quando uma mulher cita um indivíduo e o chama de cachorro, canalha, safado, é melhor você cancelar a cerveja e pedir uma garrafa de pinga. E se você conhece o cão da história, é melhor aproveitar a viagem do garçom e misturar a pinga com uísque. Falsificado, de preferência.

Calado, você engole. A pinga e o discurso de que ele não vale nada. Foi um deslize. Ou melhor, um momento de carência afetiva. Se ele ainda for importante na vida dela, então o discurso será de ter sido um momento de burrice. Céus, como fui tão burra? Se for um pouco experiente, ela ficará calada e não irá completar a frase dizendo que “ainda bem que você apareceu na minha vida”. Tem gente que diz isso. Sinceramente, teria sido melhor deitar na mesa, levantar a saia e chamar o cão-cidadão.

Volte para casa o mais bêbado possível, pois talvez no dia seguinte você não lembre de nada. Jogue fora qualquer doce ou chocolate da geladeira, para não correr o risco de ingerir glicose e, assim, evitar uma amnésia alcoólica induzida. Se for religioso, peça proteção ao bom deus, bata sua cabeça com força contra a parede e reze para ter uma isquemia temporária e acordar sem saber o que houve, desmiolado.

As mulheres têm uma facilidade imensa de deixar as coisas para trás. Obviamente não de fato, mas pelo menos de aparência. É uma das qualidades que a maioria dos homens inveja, porque a gente não consegue. A partir daquele porre de pinga com uísque, nada também será igual.

Afinal, você é homem como qualquer outro, sabe bem o que passa pela cabeça de uma mulher quando o jargão “ele não vale nada” sai por aquelas bocas. É tão verdade que não valemos nada, na maioria das vezes, como é verdade que eventualmente valemos tudo para alguém. O sonho de ir embora, de que se peça o divórcio, de voltar no tempo e aproveitar tudo de novo.

As pessoas sensorialmente avançadas e quimicamente otimistas sabem que a vida é assim, dá muitas voltas, as relações vão e voltam, nem sempre permanecem, deslizes são constantes, as carências também, o importante é tentar, nunca desistir e procurar dar o melhor de si no presente, não no passado.

As pessoas normais sabem que é só lorota e falam a mesma coisa apenas para os outros, nunca para si. Em ambos os casos, a vida segue, mas os normais terminam formando família com quem se adequa a certos parâmetros, nunca quem nos tira o sono e nos faz contar os minutos no relógio para dar um abraço.

Fantasmas são tão comuns quanto as carências afetivas das pessoas. A única diferença é que fantasmas têm sete vidas. Às vezes, basta uma garrafada para sumir. Outras vezes, a única saída é declarar moratória e pedir um financiamento ao diabo.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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