Dasilva 26 de abril de 2008

Nunca se pode ler por apenas uma cartilha.
março de 2008

Vimos, anteriormente, que o aprendizado acontece como o movimento das ondas do mar – para um olhar superficial, elas parecem iguais e se repetem. Não se vê que cada “repetição” é única, pelos ingredientes e pelas circunstâncias que são novas e, que as ondas seguem uma direção definida. Por não ver isso, muita gente se impacienta com o processo, não percebe o salto qualitativo que já amadurece nas “tentativas” e que vai passando de conhecimento ensinado a saber aplicado. Aí, se pode fazer atalhos, inventar.

Desta vez, o convite é para saborear em conjunto de um outro ensinamento da vida – Nunca se pode ler por apenas uma cartilha. (Antes de começar, para não entrar na preocupação acadêmica de definir o que seja cartilha, podemos entrar num acordo e adotar o sentido de cartilha como versão).

Uma vez, para uma conversa sobre dialética, alguém levou um copo pela metade de água. Foi pedido ao grupo que definisse o copo que estava vendo. Entre passivos, desconfiados e desafiados, dois blocos tiveram descrições opostas – um via um copo meio cheio e outro via um copo meio vazio. Podes-se imaginar o conteúdo do debate filosófico que se seguiu – quem está certo, o que é verdade, a possibilidade de duas verdades simultâneas sobre o mesmo fato, a relatividade do que seja a verdadeiro…

Deixando o debate sobre a unidade dialética dos contrários, voltemos ao exame do ensinamento proposto. Ele encerra uma carrada de experiências históricas e pessoais enunciada numa frase. Quem pesquisou deve ter escrito um livro, quem anunciou deve ter feito uma cartilha e quem passa para o vulgo (divulga), o resumiu num conselho. Destaco algumas orientações que me parecem fazer parte dessa admoestação:

1. É preciso que cada pessoa tenha sua cartilha. Quem não tem posição pessoal, nem princípios e valores, em geral, se move conforme os ventos e as conveniências. Não possuir um ponto de vista, não adotar uma visão de mundo, é como não ter alma – é uma atitude própria de quem é politicamente oportunista, religiosamente sincretista e intelectualmente eclético. É fundamental ter clareza sobre o porto de chegada, as orientações de procedimento e um caminho que conduza ao objetivo.

2. A existência social das pessoas condiciona seu pensamento: nossa vida é marcada por nossa luta pela produção, na busca por afirmar-se como protagonista e pelas experiências cientificas de nosso tempo. É através desse olhar que lemos a realidade e tomamos posição na lida cotidiana. A cabeça sempre pensa por onde os pés pisam. Embora seja uma visão vista de um ponto, continua um ponto de vista verdadeiro – meio cheia ou meio vazia, a panela de barro continua sendo quebrada pela panela de ferro.

3. Ter um relato coerente e uma interpretação da vida não constitui nenhum atraso, como pregam os pós-modernos (?). Exatamente porque uma pessoa em sua base sólida, ela é capaz de dialogar, apreciar e até incorporar dimensões, olhares e valores de outras versões, pessoas e culturas. A necessidade de ter certezas nunca pode justificar a miopia de ver que a realidade é bem maior e que alargar horizontes e conhecimentos só nos torna mais experientes no trato e na convivência.

4. A cartilha ou o catecismo é uma tentativa de traduzir de forma plástica e simples, para determinado publico, em determinado momento, o núcleo das convicções e utopias que movem um grupo e que, por natureza, carregam conteúdos complexos. Essa forma didática e necessária só se torna símbolo de prepotência, reducionismo e dogmatismo, quando essa forma congela o conteúdo e tenta se impor como pensamento único e até divinizado, fora do qual não há salvação.

5. Nesse sentido, é indispensável ler por outras cartilhas, inclusive dentro de um mesmo grupo, para garantir a subversão e exercitar a capacidade crítica. Sem visão crítica não pode haver conhecimento verdadeiro e é fácil cair na obediência cômoda ou cega que professa fórmulas acabadas e aplica receitas transplantadas. De maneira especial, é preciso relativizar a versão oficial. Por zelo, legalismo, medo de perder o poder ou por afastamento da base, mistura ou perde a lógica de serviço à causa com a estabilidade da estrutura e da preservação do cargo.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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