A mulher amava aquela serra como se fora um prolongamento do seu corpo e uma complementação do seu espírito. Amava tudo quanto estivesse ligado a ela.
Viu-se novamente menina.
Voltou à paisagem antiga e pensou o quanto tudo aquilo era importante. A Catedral plantada no meio da Praça. A Serra, moldura linda, guardiã fiel de tantas e tantas vidas por ali passadas, vividas e acabadas. Só ela – a Serra – sabia quem amava aquele mundo também mágico ali a seu pé. Ninguém poderia ali viver sem amar todas as coisas que estavam no seu reinado: O Convento, velho franciscano encapuzado, fincado no alto do Prado, parecendo nunca haver sido criança. Possuíam – ele e a Catedral – uma sabedoria como se houvessem, naquela cidade, dado vida a todas as gerações. Entrávamos no ventre daqueles templos e, magicamente, saíamos adultos, crescidos, prontos para a vida.
O Colégio de Santa Dorotéia, jovem noviça onde entrávamos crianças e se algum dia voltássemos seríamos crianças novamente.
A antiga e querida escola de D. Marieta, na rua Barão, que era de Vila Vela, mas só o Barão respondia presente.
A Escola de Teca e Bel, na rua Quinze, onde ao som da batida dos saltos altos de Teca e da sua austeridade, recebíamos os primeiros ensinamentos com o beneplácito e a paciência de Bel que sempre estava pronta a justificar nossas trelas de criança.
Hoje, todas essas ruas estão cheias de pensamentos novos e volto eu, com meu baú de recordações como a querer tocar uma seresta de saudade e de melancolia sobre todas as lembranças que ainda marcam o coração de alguns sobreviventes desta saudade incurável.
A imaginação não protege da realidade.
Olha sua pele marcada pelo tempo, os pés cansados das longas estradas, o corpo enfadado das canseiras da vida.
A imaginação não protege das boas lembranças pois a menina despenca da rua quinze e se vê escorregando pela ladeira do Colégio ganha o mundo na sua ansiedade de lembrar e joga milho na frente dos burros do bonde, imita o apito do trem e segura “seu” Lula para ele não bater as nove pancadas malditas que da boca do sino saíam como uma ordem marcial: “meia volta, volver”! A menina feliz inconseqüente, que levava palmada por andar descalça e correr pelas ruas, entrando pela porta da sacristia da igreja e sair correndo pela frente pulando os degraus de quatro em quatro, aqueles mesmos degraus os quais ela ajudava “seu” Zeca Didier a subir todas as manhãs no horário da missa. Aí, como a menina sentiu no dia em que morreu seu amigão que sempre lhe dava um glorioso bom dia, cumprimento que só as pessoas grandes recebiam.
Menina danada e feliz que roubava da despensa de casa – que possuía coisas em abundância – charque, farinha, feijão e arroz para distribuir com quem não tinha despensa cheia, e que depois levava castigo e palmadas por não conseguir entender que “não se tira comida de casa para dar aos outros”. Mas, é que tinha tanta…
A menina feliz deixou de ser criança depois daquele minuto infinito em que percorrera toda a querida cidade sob o olhar mágico da sua querida serra.
Humildemente, recolheu-se à sua Catedral interior.
Obs: Texto extraído do livro da autora – A Magia da Serra –