a sergipanidade latente e manifesta.

“…porque o Senhor não vê como vê o homem. O homem vê o exterior, porém o Senhor, o coração” (1 Samuel 16:7).

Na semana passada, começamos a analisar a decisão do TJSE (Tribunal de Justiça do Estado de Sergipe) que decidiu pela declaração de inconstitucionalidade, com efeitos ex-nunc (isto é, da proclamação da decisão em diante), dos arts. 66, inciso I e 67, da Lei Complementar Nº 67/2001 que reenquadrou os antigos fiscais de tributos em auditores técnicos de tributos.

A partir de tal decisum e tentando investigar e enxergar os interesses que envolvem a questão do “reenquadramento da Lei”, percebemos que, em verdade, várias são as motivações de vontade, expressas ou não, dos organismos envolvidos. Chegamos até a afirmar que “esta questão que envolve o FISCO, em si, desnuda para nós a identidade sociológica e cultural do sergipano. Ou como diriam os mais cultos: a nossa ‘sergipanidade’, que, ressalte-se, tem aspectos positivos, mas também negativos”. Isso porque, como nos ensinam os filósofos e psicólogos – que aprenderam com a epígrafe deste ensaio – nas declarações de vontade existe o que é manifesto e o que é latente. Existe o que é dito e o que não é dito. E é nessa dicotomia da alma humana – para não dizer “vida dupla ou dissimulada” – que compreendemos o porquê das nossas (inten)ções e (a)ções.

Tais teorias, assim, têm clara aplicação pragmática, como no caso em tela que envolve os fiscais e auditores tributários. Há um nítido complexo de interesses e motivações individualistas, no caso em análise, que perpassa o Fisco, envolve o Governo, a Justiça, a Sociedade e, em última instância, o “ser sergipano”, e que em nada toma em consideração o princípio da supremacia do interesse público e o valor maior da democracia.

O Fisco, como vimos, com os desdobramentos do caso, demonstrou para nós ser um órgão estatal que aglutina, por força de lei tão-somente, dois grupos de servidores públicos, historicamente, antagônicos. Temos gregos e troianos, forçosamente, a serviço do Estado e da Sociedade (imaginemos, nós, o resultado disso). O Governo, por sua vez, encurralado por todos os lados por uma “sociedade” que clama por urgentes mudanças que tenham repercussão mais individual (ressalte-se!) do que social – porque, não nos enganemos, essas ondas de greve do setor público não têm outro objetivo a não ser “melhorar minha vida e colocar em evidência os meus interesses” – omitiu-se e omite-se em firmar posição pelo novo concurso e pela regulamentação constitucional das carreiras envolvidas (que decepção!).

O TJSE, ao decidir pela declaração de inconstitucionalidade dos dispositivos da supracitada lei, acertou em cheio. Não havia outra solução – justa, democrática e de acordo com os ideais fundantes da nossa República Federativa do Brasil – a ser dada. O que foi feito em 2001 foi vergonhoso, triste e nos faz lembrar que, em ações como essa, onde se burlou o princípio constitucional de acessibilidade aos cargos públicos através de concurso de provas e títulos, razão assiste ao grande jurista Rui Barbosa: “Toda a capacidade dos nossos estadistas se esvai na intriga, na astúcia, na cabala, na vingança, na inveja, na condescendência com o abuso, na salvação das aparências, no desleixo do futuro”. É exatamente isso que, latentemente, motiva as ações e políticas públicas de um Chefe de Poder Executivo que, sabendo qual o princípio mais nobre a ser defendido, prefere o “jeitinho” jurídico para agradar uns em detrimento de toda a Sociedade.

O único reparo a se fazer na decisão do TJSE – e aqui já percebemos a atuação dos interesses latentes – é quanto à modificação dos efeitos da decisão. Primeiro, o TJSE, à unanimidade, seguiu o entendimento do Relator e decidiu pela declaração de inconstitucionalidade desde a edição da Lei. Decisão acertada! Ora, se o princípio que a sociedade esculpiu na Constituição Federal foi, flagrantemente, burlado, claro que, tudo que foi feito com base nessa inconstitucionalidade deve ser nulo de pleno direito. “O pau que nasce torto até a cinza é torta”, por isso “o mal, deve-se arrancar pela raiz”, até por uma função de pedagogia corretiva! Esses são ditos populares de uma sabedoria ímpar e que se aplicam ao caso concreto. Por que o TJSE mudou de posição e determinou que os efeitos da flagrante e vergonhosa inconstitucionalidade seriam da decisão em diante? Por que não aproveitou a ocasião para, pedagogicamente, mostrar ao Executivo que, em Sergipe, o princípio da independência dos poderes e dos “freios e contrapesos” não é uma utopia constitucional?

É de se lembrar à Corte Sergipana que a modulação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade sem a pronúncia de nulidade, prevista no art. 27 da Lei 9.868/99, só deve ser usada, excepcionalmente em “hipóteses em que a lacuna resultante da declaração de nulidade possa dar ensejo ao surgimento de uma situação ainda mais afastada da vontade constituciona”” (Gilmar Mendes – STF). Não é o caso do reenquadramento feito. Fiscal é fiscal, auditor é auditor, agente de polícia é agente de polícia, delegado é delegado, juiz é juiz, desembargador é desembargador (sob pena de supressão de instância! Alguns gritariam). Tudo que foi feito é sim – e deveria ser – nulo de pleno direito, para o Estado e a sociedade sergipana em geral aprender a administrar os seus próprios erros e não os esconder embaixo do tapete.

O que se vê nisso tudo é a continuidade de um padrão de conduta na esfera pública, onde nós sergipanos(as) nos acostumamos a viver em função dos nossos próprios interesses; de modo tal que a “coisa pública” sempre é um bem só, mediatamente, a ser defendido. Porque, em primeiro lugar, vale a luta pelo meu interesse, custe o que custar, nem que para isso eu tenha que declarar algo e fazer diferente. Já foi o tempo em que ilustres sergipanos, como Gumercindo Bessa, não tinham medo de se posicionar, mesmo que para isso tivessem que enfrentar os amigos do Executivo, do Legislativo e do Judiciário. Numa democracia, o Governo sempre é do Povo, pelo Povo e para o Povo! Isso vale para o Fisco, para o Governo, para a Justiça e para cada um de nós sergipanos.

(*) Mestre em Direito – UFPE.
Professor da UFS.
([email protected]).

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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