Dasilva 26 de fevereiro de 2008


Dias atrás, peguei carona com um colega e, ao chegar ao pedágio, escolhemos a fila menor que, como prevíamos, demoraria mais. Nessas horas, é invariável o comentário sobre a única lei que realmente existe – a lei de Murphy – da qual todas as outras derivam: “se algo pode dar errado, vai dar errado”. Não adianta tentar se livrar, pois, o que está previsto vai acontecer. Tínhamos munição para nos entreter pelo resto da viagem.

Os adeptos do acaso argumentavam que tudo não passava de simples coincidência sobre o qual não cabe especulação. Que só uma consciência ingênua seria capaz de aceitar a idéia de plano traçado, de armação da providência. Se tudo estivesse predestinado, diziam, como responsabilizar ou premiar as pessoas, se elas teriam que necessariamente passar ou fazer aquilo. Onde ficaria o livre arbítrio?

O pessoal de formação religiosa preferia não mexer com a divindade e acharam a explicação da coincidência muito ateísta, afinal, tudo já está escrito. Nossa liberdade está, no máximo, em conhecer o destino e ele se adequar. Inclusive quando a coincidência desagradável vem em série – uma desgraça nunca vem sozinha. Longe de pensar em castigo, é preciso ver nisso uma missão, um desafio, uma oportunidade – esse karma seria o pagamento por erros passados e condição de aperfeiçoamento.

Esse é o tipo de discussão em paralelo; nunca chega a um consenso, mesmo que as pessoas não tenham mais argumentos para sustentar suas afirmações. As pessoas partem de convicções arraigadas que é de uma racionalidade em outro plano. Por isso, prefiro constatar essas coincidências e saborear as agradáveis. Por isso, passo a descrever uma coincidência seriada que me aconteceu, no final de 1974.

Fora visitar um parente que morava 12 k de Porto Velho, RO. Meu tio, orgulhoso de sua terra, me garantira que, no dia de pegar o avião de volta, não haveria falta de táxis para levar-me ao aeroporto. Minha confiança foi sendo afetada quando já faltava uma hora para a viagem e nem sinal de táxi. Minha ansiedade se aplacou um pouco quando faltavam 45 minutos para o avião partir – apareceu um táxi na estrada!

O problema é que o carro sofrera um imprevisto e rasgara o pneu deixando a câmara exposta e vulnerável. Como só tinha tu, vai tu mesmo ainda que eu fosse, com o coração na mão. A 5 km da cidade, estoura a câmara e desespero bate. Faltavam 35 minutos quando apareceu na estrada um jeep do exército. Embora não fosse politicamente correto, dar bola para quem expressava o regime da ditadura militar, o jeito foi pedir carona para chegar na cidade e tomar um táxi.

Entrei esbaforido, no avião, onde já estavam sentados todos os passageiros. Nesse momento, ouve-se a voz do comandante explicando que por falha nas baterias de alimentação da aeronave, não seria possível decolar, nesse fim de tarde, para Manaus. (Nessa época, os aeroportos da Amazônia funcionavam de forma precária). Deveríamos voltar ao aeroporto para seguir no dia seguinte e que fora providenciado hospedagem pra todo mundo.

Aí, o rumo das coisas começa a virar. A primeira surpresa: o gerente do Seltom Hotel que nos acolheria era um antigo colega de ginásio, na Paraíba, fazia doze anos. Como seria de esperar, vieram os abraços, as notícias, as lembranças. Quando nos demos conta todos os quartos de seu hotel tinham sido ocupados. Não adiantou suas bravatas contra seus funcionários que não tinham reservado hospedagem para seu amigo.

Acabara de me instalar num hotel de 5 estrelas, ainda sem saber como me virar com tanto luxo, quando toca o telefone. Era meu colega convidando para um jantar, aliás, um lauto jantar. De repente, lá pelo meio da comida, ouço alguém chamando pelo meu nome. O mundo tinha ficado pequeno mesmo. Era uma antiga aluna de Recife que se casara e como seu marido fora transferido, tinha acabado de chegar a Rondônia.

Como se vê, fica difícil decidir se tudo não passou de um grande acaso ou de um plano cuidadosamente arquitetado. Nessas horas, parece que o mais inteligente é viver, com intensidade, o que nos faz feliz. Em tempo: o sonho acabou às 5 da manhã, quando o funcionário do hotel nos acorda. Estava na hora de viajar.

Fevereiro 2008

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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