Paulo Rebêlo 19 de janeiro de 2008

Quando você aprende a conviver em harmonia com a insônia, ela pode até se tornar uma aliada. Enquanto os outros dormem, abre-se um universo paralelo que inclui pessoas, lugares, cheiros, comidas e até animais que, a priori, não existem para a sociedade do horário comercial.

Depois de anos por amaldiçoar frustrações passadas pela insônia, com o tempo de aprendizado noturno as pessoas começam a reclamar é quando o sono chega antes de o sol nascer. Pois é justamente nesse horário, no qual até os meliantes adormecem, que você consegue apreciar o azul de uma bebida, o sabor de uma conversa e a compaixão de um vira-lata.

Com o tempo, você identifica aqueles lugares cujas portas não fecham antes do primeiro raio de sol. Ali, você vai encontrar sempre os mesmos garçons puxando uma soneca enquanto não aparece um cliente. Ao entrar, eles se recompõem, ajeitam a gravata na gola e se aproximam rapidamente. Não para trazer o cardápio, não para perguntar qual é a bebida. Porque tudo isso eles já sabem decorado.

Aproximam-se para reclamar. Afinal, já faz tempo desde sua última visita. Eventualmente, pedem para você olhar um caderno com exercícios do supletivo que o filho está cursando, mas que ele não sabe resolver os problemas. E às vezes eles não falam nada, apenas trazem sua dose e seu bife, em silêncio, pois sabem que quando você chega com o bloco de anotações à mão é porque quer apenas escrever em cima da mesa, sem ninguém por perto e sem importúnios.

Dessabores noturnos –
O silêncio é o bem mais caro da madrugada.

Pois, é com o silêncio nas ruas que você ensurdece perdido em idéias e questionamentos nem sempre cartesianos. E é com o mesmo silêncio que você consegue escutar de forma tão voraz o som dos primeiros roncos de motores de ônibus, uma espécie de aviso prévio da manhã comercial que se aproxima.

E enquanto se volta para casa, você se torna um privilegiado ao poder experimentar o sabor de uma fruta fresquinha, às 5h da manhã, quando o vendedor ainda nem armou o carrinho para começar a vender logo mais. É um prêmio pelo seu companheirismo de estar ali, como quem diz: ‘você não está sozinho nesse mato-sem-cachorro’.

E por falar em cães, eles talvez não sejam tão amigos quanto o cachorro-engarrafado do Vinícius, mas certamente conseguem sentir o cheiro do sono quando chega. São os primeiros a aparecer, lentamente, desgovernados pela rua, quase como lhe protegendo de seres sobrenaturais cujas narinas caninas conseguem sentir de longe, enquanto se caminha pela rua deserta. Se você voltar ao mesmo local durante o dia e procurar aquele vira-lata, ele não vai estar. Talvez, assim como nós, ele seja insone e apareça apenas durante a madrugada, sem hora marcada, mas nunca na hora errada.

Durante a semana, você aproveita para aprender com as histórias de vida de gente que sabe muito mais de vida do que você. Os porteiros largam e vão tomar um leite pingado com uma fatia de pão e margarina. Os garçons sabem de tudo o que acontece na cidade, você não precisa mais nem comprar jornal. Os motoristas de bacurau dão as melhores dicas de bares discretos para você levar a amante. Dicas muito bem aproveitadas pelos seus amigos casados, aliás, são quem precisa.
No final de semana, contudo, é a sua hora de repassar conhecimento adiante. É quando aqueles guris saem das boates e baladas, fazendo barulho e cantando alto, como se fossem os donos da rua e tivessem o direito de acordar os felizes homens e mulheres que adormecem, juntos um ao outro.

E você, que nem fuma essas coisas caretas, precisa tirar um Malboro do bolso da camisa xadrez, acender, baforar vagarosamente enquanto caminha de encontro a eles, fitando-os. E os mais perspicazes baixam o tom de voz, ou mesmo se calam, como se estivessem finalmente aprendendo que na vida real o silêncio sempre fala mais alto. Desde que você aprenda a ouvir.

Cheiros de madrugada –

Você chega à praia e não consegue entender como a maresia e o cheiro de areia molhada são tão diferentes de madrugada. É apenas neste horário que você pode se deitar na areia de roupa e deixar a onda bater, sem parecer doido. E consegue ouvir quase todas as frequências sonoras de cada onda que se quebra.

Ao ir embora e ao ver os vendedores dormindo naquelas grutas no subsolo das barracas de coco, entende que seu ideal de desapego material ainda está longe de se concretizar, mas que agora não é mais hora para se pensar nisso, mas de voltar para casa – pois ao dobrar a esquina, já é possível ver o primeiro clarão de sol, não mais alaranjado e denso como outrora, mas agora esparso e amarelo claro. É o aviso final que o dia já chegou.

A última tangerina já se foi, ficou com o jornaleiro, um dos caras que você mais admira na madrugada. Submerso naquele cheiro ruim de papel-jornal, ele vende, mas não acredita naquelas fabricações irreais que você mesmo ajuda a fabricar. Mas, acredita em você que sempre promete pagar o jornal na hora do almoço, logo mais quando passar em direção ao trabalho.
Pálpebras pesadas, você chega em casa procurando as mesmas respostas que sua insônia sempre lhe negou. Uma batalha que se dá por vencida, há muito, restando somente o refúgio de uma rede velha armada no meio da sala, entre camisas, papéis espalhados e lembranças.

O cansaço e o peso do horário decerto não lhe deixam sonhar, mas logo mais à noite ela volta a fazer-lhe a mesma pergunta enquanto você tenta esquecê-la. Porque é a mão dela lhe puxando para a rua como quem partiu e não devia. Ou talvez seja apenas a mão pesada da insônia. Não faz diferença, porque ninguém nunca disse que era hora de partir. E mesmo assim; assim ela se foi.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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