Saulo Marden 15 de dezembro de 2007


“…desejo também que nenhum de seus afetos morra…”
Victor Hugo

Nuvens na cor cinza escondiam o sol. Dia típico londrino onde a depressão se anuncia, marca presença.
Roberto e Clarice, dez anos de casados, três filhos, acabavam de acordar.
O carinhoso bom dia de antes acompanhado de beijos e abraços cedera lugar a um “oi” acompanhado de: “Hoje será um dia cheio, nem quero pensar no que tenho a fazer.” ” Eu também.”

A força aglutinadora do início de vida a dois – o sexo – perdia a intensidade, traçava o lado frio da curva do entendimento. As obrigações para com o trabalho ocupavam todos os espaços, espremia o tempo. As leis da sobrevivência, da aquisição do patrimônio, da garantia de uma velhice amparada e digna cegava, negava, intervinha no crescimento do casal.

Nos fins de semana, o exercício da profissão os afastava. Ele jornalista, ela médica. As reportagens e os plantões os conduziam a lugares distintos. O tempo passava sem se darem conta de que o diálogo, quase ausente, deixava de lado a paixão, a solidificação do amor, e os conduzia ao campo da amizade.
Juntos, no entanto solitários. Presenças ausentes. Um vasto campo para a aceitação da rotina que, na espreita, aguardava a oportunidade para agir forte e resoluta.

Diante deste obstáculo, procuraram uma saída, definiram um objetivo: trabalhar, trabalhar, trabalhar. Queriam ser reconhecidos pelos seus superiores. Talvez, assim, conseguissem um mesmo período de férias. Chances existiam. E, esperançosos, trabalharam até atingir a meta:
– Clarice o que acha de marcarmos nossas férias para abril?
– Por que abril e não julho que é o mês de férias dos meninos?
– Abril é baixa estação. Poderemos economizar um pouco.
– Lá vem você com suas economias. Já combinamos o que gastar, para que reduzir?
– Clarice, não é esta minha intenção. Quem disse que eu quero economizar na viagem. Eu me refiro às despesas com hotéis e excursões. Se deixarmos para escolher na hora, gastaremos menos. Com isso sobra um pouco para comprarmos mais.
– Você está lembrado que existe uma cota que não podemos ultrapassar?
– Estou.
– Então esqueça as economias e vamos aproveitar do melhor enquanto temos saúde.

Os primeiros dez dias foram motivo de alegria e excitação. Os passeios diurnos aos logradouros públicos, os jantares acompanhados de danças folclóricas os enchiam de curiosidade. Numa visita a um museu de artes:
– Veja que beleza esta escultura de Rodin!
– É realmente perfeita. Esta parte da pedra sem acabamento dá a impressão que a mão continua imergindo, tomando forma.
– Eu não vejo assim, apesar de achar bem feita. Acredito que ele parou aí por achar que estava pronta.
– Clarice, segundo alguns estudiosos, ele utilizava esta técnica propositalmente. Queria deixar o espectador livre para imaginar a peça como bem entendesse.
– Para mim uma obra tem que ter forma, estar acabada, polida.
– Ele não pensava assim. Considerava a obra terminada quando sentia ter atingido a finalidade a que se propôs. Foi assim a participação dele para o impressionismo. Essas atitudes rebeldes contribuíram para quebrar os preconceitos e certas convenções da época.

O entendimento estava cada vez melhor. As novidades traziam momentos agradáveis. O entusiasmo aliviara as tensões liberava o sexo que reaparecia como apaziguador dos conflitos e animador do casal. Quando surgiam desentendimentos, voltavam a viajar, iam para outra cidade ou outro país. Conheciam novos lugares, gozavam de novas emoções.

Ao retornarem, fotos, lembranças, visitas de amigos foram durante meses, o vinho que os alegrava e permitia fugir do ócio. No entanto, aos poucos a animação arrefecera. A televisão servia para amortecer o clima. Pouco diálogo e, às vezes, alguns monólogos quebravam o cochilo. Raras eram as noites em que dormiam na mesma hora e, quando acontecia, o cansaço imperava afastando qualquer iniciativa amorosa:

Clarice, no entanto não se sentia entregue e, num domingo, quando coincidiram as folgas:
– Vamos conhecer as reformas do cais do porto, Roberto? Depois almoçaremos num restaurante. Vamos sair de casa, vamos sair dessa mesmice.

Sentados no banco na praça do cais olhavam para o mar. Ao largo um navio saia da barra. O apito sinalizou a partida, e os fez pensar naquela cena: “Quantas pessoas estão ali?,será que estão felizes? O que estará pensando Roberto? Ele também olha para o navio.” “É uma viagem de turismo, bem que poderia estar ali com Clarice, aqueles jovens abraçados não param de rir, aqueles sim devem estar felizes.” “E aquela mulher solitária debruçada no convés, parece que deixou alguém querido ou não tem com quem partilhar a alegria. A tristeza é traiçoeira, vem quer estejamos acompanhados ou não.” “A felicidade não pode ser vivida sozinha.”

O navio inicia a manobra de saída do porto. Roberto e Clarice viam as pessoas, aos poucos, diminuírem, perderem a nitidez, tornarem-se pontos no convés. As águas escuras em forma de ondas quebravam no cais, levantavam espumas. Um som grave e melancólico se fez ouvir. Anunciava a hora da partida, hora da despedida, o som do adeus. Adeus que os trouxe à realidade. Realidade de desencontros. Desencontros de pessoas em uma sociedade agitada.

Abraçados choraram enquanto o navio seguia de mar adentro. Levava os desentendimentos, deixava a compreensão por mais alguns dias.

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Obs: Imagem enviada pelo autor

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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