Na parede a pintura de um barco trouxe-me lembranças da adolescência. Majestoso, aguardava-me nas águas do mar de Olinda. Juntos, saíamos em busca de sustento. Quantas vezes isto aconteceu, não sei. Há muito e por muito tempo esta rotina foi trabalho, distração, vida. Aos quinze anos recebi um barco de tios que viviam da pesca. Por um período de um ano, todo fim de semana, ia conferir o andamento, ver detalhes da sua construção, pensar nas cores: Azul, vermelha, cinza. No dia em que me entregaram, batizei-o com o meu nome: Patrício. Criara a identidade. Não me perguntem o porquê. Talvez mais adiante, consiga transmitir o que na época não consegui saber.
Órfão, aos dez anos fui morar com os tios. Passava uma temporada na casa de um, ia para a casa do outro; deste modo, cresci. Sobre o mar assimilei tudo o que me ensinaram. Quando voltava cedo da pesca, ia à escola. Nesta luta, consegui terminar a oitava série. De poucas amizades, sempre gostei de ficar só. No mar podia dizer, pensar, agir. Algumas vezes, falava e o barco respondia em meu segundo pensamento. Numa dessas ocasiões:
– As ondas lembram seres humanos. Você não acha?
“Sim. Olhe esta: forte, alta, vem com arrogância. Quer se impor pela força, pelo barulho ao quebrar, na vontade de dominar-nos.”
Respaldados pela experiência, a recebíamos de proa, sem medo. Passávamos por cima como se nada nos tivesse atingido. Víamos ao longe a fúria se desmanchar em espuma. Voltava branda reunindo energia, se agrupando para uma nova investida. Batiam a bombordo ou a boreste, mas nunca conseguiram derrubar-nos. Outras passavam suaves, com educação. Pareciam cumprimentar-nos. Voltei à conversa:
– Veja o que é o mundo. Homem e barco sem distinção ao enfrentar a vida. As ondas são para você o que o ser humano é para mim. — e o pensamento me deu sua resposta:
“Está enganado. Ondas só demonstram temperamento: forte, fraco, ausente. O homem vai além. Apresenta-se com inteligência, ignorância, astúcia, traição ao se determinar por querer. Quando enfrento as ondas, logo distingo seu modo de agir. Coloco-me em posição de defesa. Elas não mudam; por isto, jamais o coloquei em risco. Todos os dias vamos para o alto mar. Passamos por momentos difíceis sim, mas sabemos superá-los. A técnica nos guia.”
– Você tem razão. Por serem previsíveis, torna-se mais fácil lidar com elas. O sucesso estará garantido se conhecermos as condições de navegabilidade e tivermos boa saúde.
“Com o ser humano a coisa é outra. Sempre surpreende.”
– Concordo, para decifrarmos o que quer, demanda tempo. Às vezes, nem conseguimos. E aí passamos pela vida sem viver, fazer, ou ser.
Hoje, impedido de velejar, lembro-me das idas e vindas que fazia. Estou feliz. Tenho casa, mulher e filhos já independentes. Nenhum seguiu a profissão de pescador. As histórias contadas, talvez os induziram a seguir outro destino, diferente do meu. Não interferi na escolha. Tiveram livre arbítrio. De tudo isto uma coisa é certa:
Cada um tem seu barco e seu mar.
Obs: A imagem foi enviada pelo autor com a seguinte explicação:
“Na minha casa em Olinda tenho um quadro pintado por Rolando Vila que consta de uma paisagem de um barco solitário, ancorado em pleno mar. Ao Observar aquela impressionante pintura onde as águas parecem em movimento fiquei surpreso quando a história do menino veio a tona. Daí em diante foi só escutá-lo. Os quadros pintados ou não para mim têm vida própria, guardam uma história.”