Recentemente fomos brindados com uma publicação da professora Eny Cleide Farias, intitulada Interpretação do Patrimônio – Histórias da Praia do Forte Contadas pela Comunidade. Ela integra a Pós-graduação da Olga Mettig, é mestra em educação pela Ufba, e estudou no Estado de Israel e em junho de 2006 foi eleita Presidente da Associação Nacional de Interpretação do Patrimônio. Como ninguém, ela sabe da importância dessa riqueza que colocou à disposição da comunidade acadêmica, estudantes e pesquisadores na área de Interpretação do Patrimônio.

Esse livro resgata a memória oral daquela comunidade . Sabemos da importância da fonte oral – há momentos em que ela pode ser comparada à fonte escrita . A história oral é sempre conseqüência da ligação que existe entre memória e identidade social. Claro que há o perigo dessa memória se esvair , por isso, agora, esse patrimônio foi condensado e sistematizado nesse livro que é modelar para atividades congêneres. O livro se organiza em 4 capítulos : Histórias da Praia do Forte, Atrativos Culturais e Históricos , Interpretação do Patrimônio com Comunidades: Fundamentos teóricos e Registros Fotográficos. Ele se destina a todos os que se interessam por Interpretação de Patrimônio, aos pesquisadores da cultura, mas, sobretudo, ele objetiva despertar a população pesquisada da riqueza que ela conserva, buscando, assim, significados e significações do patrimônio do lugar em que está inserida. O pesquisador, como quer a autora, deve entrar apenas para mediar, trazendo o aporte da academia. É um trabalho que reflete uma escuta , uma participação nos sentimentos . Nesse trabalho com os atores sociais, o mediador participa na construção desse conhecimento e incentiva na revelação e até na tradução dos possíveis significados daquela matriz cultural que vai ser fonte geradora dos múltiplos atrativos turísticos para aquela região. Ela quis, assim, trazer o passado para o presente e, dessa forma, dar-lhe significado.

Entre as 28 narrações colhidas pela professora, chamou-me atenção os momentos em que os sinais religiosos, nas suas múltiplas expressões e vivências, estão presentes na vida daquela comunidade – os contos orais preservaram essa memória que constitui mais do que o imaginário do povo, porem,preservam, sobretudo, a sua alma.

Na narração o Cotidiano da Vida a narradora se recorda de “como é bonita a caminhada para a igreja, todos de branco”. O principal ícone da Praia do Forte é o Castelo – ele congrega a todos se tornando o símbolo daquela localidade. Por isso, outra narrativa diz que “lembrei-me daqueles que se batizaram e se casaram na capela do Castelo”. E ainda acrescenta :”Recordei-me dos devotos que colocavam as imagens dos seus santos perto do Castelo para realizar milagres”. O próprio Gabriel Soares, no século XVI, na referência de Pedro Calmon, já cita que havia “uma igreja dedicada a Nossa Senhora da Conceição, muito ornada, toda de abóbada, na qual tem um capelão que lhe ministra os sacramentos”. A descrição de Manoel Santana intitulada O Mar, é um poema que brota de sua familiaridade com as águas, o elemento primordial :”Tudo começou lá no mar …ele é a fonte do alimento que buscamos… é nele que procuro o sentido de viver. A aventura pelo mar é entregar o seu ser a um Ser Maior…” Há também uma bela tradição do Ramo, que “ conforme os mais antigos, começou na festa de S. Francisco”. Mas a festa se estende de 25 de setembro até 10 de outubro.A interpretação do Patrimônio concernente a esse item está exemplar. O Ramo é um elemento bíblico-cristão preponderante. E a explicação mostra o Ramo presente desde o Gênesis, quando Noé, durante o Dilúvio, quer saber se já há terra firme, envia uma pomba que volta com um ramo verde no bico. A presença do Ramo alcança o seu auge com Cristo no Domingo de Ramos, na sua entrada triunfal em Jerusalém. No fundo, essa festa aponta para a necessidade de preservar a vida – pede-se a S. Francisco que aumente a fartura e a fé. Há também um Reggae Nativo que é veículo de uma consciência crítico-política :”Meu Deus, tenho medo do Senhor voltar ao mundo e esses tubarões ( do poder econômico) lhe matarem novamente”. A presença da crença na proteção dos orixás, reflete a matriz africana naquela região:” E o orixá falou: vocês um dia desses se viram apertados, não foi?Mas vieram guiados por uma Força Maior”. Isso comprova que esses mitos e rituais , que normalmente transmitem os problemas humanos, são preservados pelo sistema de crenças dos pescadores – e estão presentes nesse destino turístico.

A autora dá uma interpretação fenomenológica a esses ricos relatos. Dessa forma, ela quebra uma tendência, por demais cartesiana, que separa o sujeito do objeto. Por isso mesmo, a comunidade se torna o próprio patrimônio e qualquer interpretação que surja tem que passar por ela, por sua vivência . O sócio-antropólogo Pollak diz que “não podemos mais permanecer, do ponto de vista epistemológico, presos a uma ingenuidade positivista primária”. Assim, a hermenêutica, não é realizada “ex cathedra” apenas pela academia, mas sim pela comunidade, atribuindo significados às manifestações do lugar provenientes da memória.

De parabéns estão os que tiverem acesso a essa obra exemplar de interpretação do Patrimônio, da Profª Eny Cleide, que com toda certeza, foi acompanhada pelo seu filho, o brilhante mestre pelo Reino Unido, Gustavo Farias, meu colega na Fundação Cairu.

Prof. de Antroplogia na Uneb, na Cairu, na Faculdade 2 de Julho.
É membro do IGHB, da Academia Mater Salvatoris. colabora nas paróquias da Vitória e de S. Pedro.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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