Os dias que precedem a Semana Santa têm sido enriquecidos por mostras que convergem para o mistério que se celebra naquela semana. A Aliança Francesa apresenta uma exposição fotográfica intitulada Ternos das Almas. Ela se refere a uma tradição da Chapada, que estava morrendo, e recentemente foi retomada. Ela consiste numa devoção às almas que são lembradas por um grupo de devotas vestidas de lençóis brancos, sem identificar os rostos, e que, durante a semana Santa, reza nos cemitérios e depois sai pela cidade com orações acompanhadas do som estridente das matracas. Eu próprio, estando em Lençóis há uns três anos, naquela semana, presenciei a procissão dessas devotas pela cidade à noite.

Também o Museu de Arte da Bahia apresenta uma exposição intitulada A Paixão é Humana e quer, com isso, manifestar “o diálogo entre o Cristo crucificado e o homem moderno que sofre as agruras e as dores do mundo contemporâneo”. Essa exposição é composta por obras da artista plástica paulista Ângela Bonfante, alem de desenhos e pinturas sobre o mesmo tema de Carybé, Mário Cravo Jr. Poty e Marcelo Grassman.Em destaque, a reportagem do Caderno 2 de A tarde (29/03/07) coloca um desabafo existencial, mas também místico, de Mário Cravo Jr. :”O Cristo é para mim um produto da minha herança cultural e histórica , que adaptei ao mundo que conheci e que conheço até hoje”. Essa é a grande verdade , fomos endoculturados, socializados na cultura cristã que veio do velho Portugal. Outro dia, conversando com Graça, uma portuguesa que está hospedada na casa de Consuelo Ponde, ela me disse que cada vez mais fica encantada com a Bahia (leia-se : Salvador) pois aqui ainda se preservam tradições que começam a não mais existir em Portugal, sobretudo no campo religioso. A religião é uma expressão, e das mais fortes, da cultura, e cultura, ela não existe fora do viés religião.

Nos dias da Semana Santa são celebrados aqueles mistérios mais profundos e densos que constituem a origem do cristianismo. Cristo, o Messias esperado, mas que “veio para os que eram seus e os seus não O receberam”, assume o seu papel/missão de ser o Redentor. A 5ª feira Santa é o dia da Ceia do Senhor. De forma litúrgica e ritual, Ele se entrega como cordeiro imaculado- já prefigurado no Antigo Testamento – em resgate propiciatório dos seus irmãos de todos os tempos e lugares. Ele se torna o sacrifício agradável ao Pai. E assim, o cristianismo, sobretudo o de expressão católica romana e de outros ritos orientais, bizantinos, ortodoxos , vivem em torno da Eucaristia, daquela Ceia que representa a Nova Aliança. Convém não se esquecer que Lutero, tributário de sua vivência católica romana, acreditava na eucaristia, na presença real “In usu”, isto, durante a celebração da Missa a presença era mais do que simbólica. Passada a Missa , as espécies perderiam a sua força voltando a serem simples alimentos.

A 6ª f. Santa, Jerusalém se torna o palco no qual vai se desenrolar o mistério da dor maior que engloba e assume todas as dores e injustiças humanas. No Domingo de Ramos ouve-se um louvor :”Hosana ao Filho de Davi”, mas que logo se converte na acusação contraditória que, de fato, significou uma sentença de morte :”Crucifica-o”. Foi o eco que fez tremer as bases de Pilatos, que ( ele foi aconselhado por sua esposa :”Não te envolvas com esse justo, pois por causa dele passei a noite tendo pesadelos”) simplesmente “lava as mãos”.

Na Vigília Pascal , as igrejas cristãs, especialmente a católica, celebram a Festa das festas : a Páscoa. Ela, na verdade já fora preconizada pela tradição imemoriável dos judeus. Ela foi, primeiramente festa da colheita e dos primeiros cordeiros que nasciam, e se tornou a marca da libertação da tirania egípcia Seu nome hebraico, “Pessah”, evoca a passagem do Senhor libertador que livra o seu povo da mão poderosa do faraó.
Mas há uma Páscoa de Cristo, que, na leitura cristã, foi preanunciada pela primeira páscoa, a dos judeus. Na última Ceia, Cristo oferece seu corpo em salvação pela humanidade, sob a forma do pão e do vinho. Essa aliança de sangue irá, a partir de agora , unir Deus e os homens , tudo selado pela morte de Cristo , que acontece na hora em que no Templo eram imolados os cordeiros para a ceia judaica
Mas a nova Páscoa de Cristo se exprime na Ressurreição, vitória sobre a morte e todo o mal , e pela qual Ele se revela, conforme prometera, como o Filho de Deus esperado e Salvador da humanidade.

O impacto da teologia dessa celebração está no coração de toda a liturgia e da vida dos que crêem. Os primeiros cristãos faziam de cada domingo uma pequena Páscoa. No II século da era cristã, a Igreja decidiu celebrar solenemente cada ano a festa da Páscoa e a data foi fixada segundo o calendário lunar ( por isso essa celebração é móvel) como faziam os judeus.
Concluo com um trecho do “Exultet”, hino cantado na bênção do fogo novo na Vigília Pascal :
“Só tu, noite feliz, soubeste a hora , em que o Cristo da morte ressurgia. e é por isso de ti que foi escrito:
A noite será luz para o meu dia”.

Professor de Antropologia na Uneb, da Faculdade 2 de Julho, da Cairu. É membro do IGHB, da Academia Mater Salvatoris. Colabora nas Paróquias da Vitória e de S. Pedro. 

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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