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A Igreja vive, no período de 330 a 410, época em que viveram Basílo Magno e João Crisóstomo, uma justaposição ou acomodação à nova ordem imperial após o edito de Milão em 313, quando este decreto fez cessar a perseguição aos cristãos. O antigo fervor religioso diminuiu e os interesses do império penetraram no interior da Igreja. É neste contexto, que aparecem em Cesaréia da Capadócia (hoje Kaeseri na região central da Turquia) e Antioquia os dois ícones da Igreja oriental antiga: Basílio de Cesareia ou Basílio Magno e João, cognominado de Crisóstomo, que tem sua origem em Antioquia mas, exerce sua atividade pastoral como bispo, em Constantinopla. A Igreja de Antioquia já é um centro tradicional e antiga, fundada pelo apóstolo Paulo, onde o cristianismo vive seu esplendor. Constantinopla, ao contrário, começa somente agora a aparecer no cenário eclesial influenciado pela presença do imperador que desloca a sede política de Roma para esta cidade.

Os dois são padres gregos e assim sendo os padres gregos, se comparados aos latinos, são muito mais místicos e do ponto de vista do compromisso social, muito mais radical.
A distância entre Basílio (330-374) e João Crisóstomo (350-407) é de apenas 20 anos. Os dois então são quase contemporâneo mas, como Basílio morreu jovem, 44 anos, por ocasião de sua morte João Crisóstomo apenas começava.

Como Basílio, João Crisóstomo é oriundo da vida ascética vivida na solidão e no silêncio das montanhas ao redor de Antioquia. Mas isto não o afasta da realidade, “não é o lugar que faz com que alguém seja virtuoso, mas a vontade sincera e a ação” (NEULENBERG, 1994, p. 34) como ele mesmo diz algum tempo mais tarde após ter passado pelo monaquismo. Alguns episódios da vida de João Crisóstomo faz lembrar D. Hélder Câmara, conta o prof. Gilbraz em um de seus escritos “Sobre esses santos e santas” publicado no folheto “Fazendo Teologia” do Departamento de Teologia da UNICAP: “Lembrei-me que uma vez D. Hélder chegou bem atrasado para a missa dominical da manhã, que era celebrado no santuário dos salesianos e transmitida pela rádio Olinda, com grande audiência. Então foi se desculpar e disse: “quando eu vinha acabei tendo um encontro com o próprio Jesus Cristo e por isso me demorei”. Enquanto as beatas levantavam as mantilhas e cochichavam: “será que alguma imagem chorou ou o bispo teve uma aparição…” e D. Hélder arrematou de chofre: “acabei de me encontrar com nosso Senhor Jesus Cristo ali, na lixeira dos padres; estava lá catando lixo” (GILBRAZ, 2000, p. 3). Da mesma forma João Crisóstomo certa vez vai à Igreja. É inverno. E quando está para atravessar a praça, encontra lá os pobres, os estropiados e os doentes. Coitados! João Crisóstomo fica tão impressionado, que se esquece completamente do assunto sobre o qual pretendia falar no sermão. E começa assim: “hoje vou a vocês como delegado dos pobres de nossa cidade. Não me apoio em decisões nem em discursos.
Foi suficiente ver aquela miséria” (MEULENBERG, 1994, p. 38). Exploração no campo e na cidade, escravidão e partilha são temas muito comuns em seus sermões. A Igreja era a única instituição a quem os pobres podiam recorrer: “venham controlar as inumeráveis listas das pessoas que junto à Igreja estão inscritos como pobres; pensem nos muitos casos em que a Igreja presta assistência. Façam uma pesquisa estamos prontos para lhe dar contas” (sermão 21 sobre 1 Coríntios in MEULENBERG, 1994, p. 38). João Crisóstomo não suporta ver um abismo enorme entre um mundo da ostentação e o outro dos pobres e desabafa: “em vez de perfurarem as orelhas e pendurarem ali o alimento para milhares de pobres, seria melhor que vocês libertassem tantos necessitados da miséria” (sermão 89 sobre Mateus 4 in MEULENBERG, 1994, p. 39). Graças a quantas lágrimas aquele edifício foi construído? Quantos órfãos ficaram por causa disto sem roupa? Quantas viúvas foram por causa disto prejudicadas? E, quem sabe, quantos operários perderam por causa disto o salário? (sermão sobre o Salmo 48 in MEULENBERG, 1994, p. 39). Bem do outro lado do mundo de João Crisóstomo na diocese de Milão viveu Ambrósio cujo pensamento e ação assemelhavam-se ao pensamento e ação de João Crisóstomo. Após uma seca acontecida na região de Milão fez com que a cidade ficasse povoada de favelas e pessoas famintas. Ambrósio não teve dúvidas mandou recolher os cálices e vendeu; com o dinheiro, providenciou cestas básicas para os pobres e libertou prisioneiros( cf. MEULENBERG, 2001). João Crisóstomo não age diferente: “é uma tolice cobrir a mesa de Cristo com cálices de ouro, ao passo que o mesmo Cristo está morrendo nos pobres. Antes de tudo, vocês devem dar-lhes o necessário para a subsistência. E o dinheiro que sobrar servirá para enfeitar a mesa dele” (sermão 51 sobre Mateus 4 in MEULENBERG, 1994, p. 40) e quem cuidará dos pobres? Quem pensará neles? ‘Talvez os funcionários? Mas eles estão ocupados pelo tribunal, pelos processos. Talvez sua mulher? Mas ela está sonhando com seu enfeite, seu ouro. E seu filho? Seu filho pensa somente na herança, no testamento e nas riquezas que passarão a ser suas” (sermão sobre o Salmo 48 in MEULENBERG, 1994, p. 40).

Nessa época, a escravidão no império romano era uma realidade decadente; o número dos escravos diminuíra muito. Arnold Toymbee afirma que o crescimento do cristianismo minou as estruturas escravistas do império romano. O certo é que no tempo de João Crisóstomo a escravidão era ainda uma realidade.
Em tempo de escravidão, senhor e escravo podem participar da mesma celebração eucarística? Vamos ouvir o testemunho de João Crisóstomo a respeito disto: “Aqui não existe diferença alguma. A mesa do Senhor é a mesma para os ricos e os pobres. E não há somente os senhores que cantam em voz alta ao passo que os escravos tem que ficar calados. Todos nós possuímos a mesma dignidade. E a multidão eleva sua voz ao criador, como se fosse uma só boca” (sermão sobre a ressurreição e sobre as preocupações diárias, (in MEULENBERG, 1994, p. 42).
A escravidão, na visão dos padres, da mesma forma que a propriedade é uma conseqüência do pecado. O ideal é não ter, mas tem!

O bispo de Constantinopla é de opinião que se Deus nos deu mãos e pés é para que não haja escravidão. Busca na comunidade dos monges um modelo ou exemplo de estrutura da sociedade. Lá todos são iguais “cada um é da mesma nobreza, está sob a mesma escravidão e goza a mesma liberdade” (MEULEMBERG, 1994, p. 43). O ideal seria que a vida do mundo fosse semelhante à vida dos mosteiros. Aqui no Brasil passamos também por um regime de escravidão que teve fim oficialmente há um pouco mais de 100 anos. Mas a libertação dos escravos significou uma carga mais pesada do que a própria escravidão. Ao menos, o escravo tinha direito a roupa e comida. E depois da escravidão? Não tinha acesso à terra para trabalhar e morar, pois a lei da terra de 1850 tornou inacessível, possibilitando ter terra somente quem tinha direito.Por isso os negros libertos tiveram que correr para as grandes cidades se amontoando nos morros e dando início assim, às grandes favelas O testemunho de João Crisóstomo sobre escravidão no sermão 19 sobre Efésios retrata a mesma situação no início do século IV: “A liberdade é hoje em dia muitas vezes uma carga mais pesada que a escravidão. Pois no caso de ser libertado, um homem vai daí em diante passar fome. E, desta maneira, aquele valor supremo, a liberdade, torna-se causa de uma miséria muito mais apertada do que o sofrimento causado pela escravidão” (MEULEMBERG, 1994, p. 43). Crisóstomo defende a libertação dos escravos e vai além disto: solicita para se criar condições de assegurar uma vida digna após a libertação, por exemplo ensinando uma profissão.No entanto ao lermos alguns textos de João Crisóstomo ficamos perplexos, pois ao contrário de protestar contra a escravidão, prega uma harmonia e mútuo serviço entre senhores e escravos: “não é preciso que o escravo ocupe o posto de livre, nem o livre ocupe o posto de escravo. É mais importante que os senhores e escravos se ajudem mutuamente” (Sermão 19, sobre efésios, in MEULENBERG, 1994, p. 43)

João Crisóstomo parece ser mais catequista que Basílio; usa exemplos para ser melhor compreendido, faz analogias com outras realidades. Quando fala do trabalho, pode salientar as características da preguiça buscando exemplo na natureza: “Água que não corre apodrece. Água que corre, que passa pelas barrancas mais estreitas, guarda suas qualidades. Assim, o preguiçoso. Quando os outros vão trabalhar o malandro enche a barriga. Quando os outros voltam, ele rola como um porco gordo nas almofadas” (sermão 35 sobre Atos dos Apóstolos in MEULEMBERG, 1994, p. 46). Continuando a mostrar sua face catequista, João Crisóstomo imagina duas cidades: uma exclusivamente povoada só de ricos e outras só de pobres. Para o pregador está claro que a cidade dos ricos está fadada a desaparecer pois não será capaz de abastecer seus cidadãos. Ao contrário, a cidade dos pobres, que é habitada de trabalhadores, terá capacidade de abastecer a si própria. A este propósito convém pôr aqui um dos mais preciosos textos de João Crisóstomo: “No início, Deus não criou a um rico e a outro pobre. E não fez com que uns descobrissem tesouros, ao passo que escondeu estes para outros. Deus deu a todos a mesma terra para ser cultivada” (sermão sobre 1 Timóteo 4 in MEULEMBERG, 1994, p. 47). Mais na frente continua Crisóstomo “A natureza nos predispôs mais para a posse comum do que para a posse privada” (idem p. 48). A propriedade particular como já dissemos é uma usurpação e conseqüência do pecado. Também Basílio afirma: “A terra foi dada a todos os homens. Ninguém considere próprio aquilo que está além do necessário e que foi tirado do acervo comum por meio da violência” (ANTONCICH e SANS, 1992, p. 138). Esta doutrina de João Crisóstomo fez gerar o que hoje se conhece na teologia e no direito, de função social da propriedade ou destinação universal dos bens. Quem é proprietário deve se comportar como se fosse um administrador e não como dono absoluto. Ninguém é dono absoluto de nada

Concluindo, Deus quer que os homens se amem como irmãos porque têm os mesmos olhos, um mesmo corpo, uma mesma alma e em todos, um rosto parecido. Essa idéia do bispo de Constantinopla se assemelha a uma expressão do índio peruano Reynaga que ao definir o “outro” afirmou: “o outro sou eu mesmo com outro rosto” (GARAUDY, 1979). Aliás a definição de ser humano, segundo a antropologia indígena asteca do México é “uma pessoa dotada de rosto e coração” (BOFF, 1999, p. 322) e não como animal racional.

O Papa Paulo VI conhecia a doutrina social de Basílio e João Crisóstomo e é a ela que se reporta quando aborda a questão da propriedade, na encíclica Populorum Progressio: “Sabe-se com que insistência os padres da Igreja determinaram qual deve ser a atitude daqueles que possuem em relação aos que estão em necessidade. “não dás da tua fortuna ao seres generoso para com o pobre, tu dás daquilo que lhe pertence. Por que aquilo que te atribuis a ti foi dado em comum para o uso de todos. A terra foi dada a todos e não apenas aos ricos”. Quer dizer que a propriedade privada não constitui para ninguém um direito incondicional e absoluto. Ninguém tem direito de reservar para seu uso exclusivo aquilo é supérfluo, quando a outros falta o necessário” (P.P. 23 in BIGO, 1982, p. 169).

Quem gosta de Música popular brasileira lembra, com certeza, de uma música de Chico Buarque de 1972, numa fase duríssima da ditadura militar: “Quem me vê assim parado, distante, parece que eu não sei sambar… tô me guardando pra quando o carnaval chegar”. Nesta música, o carnaval, celebração da alegria e da liberdade do povo aparece aí como imagem da libertação (SOUZA, 1992, p. 84). Quem vive a realidade social do dia a dia, carregado de dor, opressão e de alegria também, vive na expectativa da celebração litúrgica semanal, para buscar força, alívio e conforto para a vida; “Tô me guardando pra quando o carnaval chegar”. A liturgia é a identificação da ação salvífica de Deus no cotidiano da vida. É costume escutar afirmações como esta: celebrar a vida; celebrar os acontecimentos. Em “Para viver a liturgia”, Lebon (1993), no capítulo 4, que leva o título “liturgia é ação” diz: “Ora, a liturgia é, em primeiro lugar, ação. (…) um objeto nunca se mostra simbólico em si mesmo: torna-se tal quando constitui o suporte de uma ação, de um gesto. Flores, luz, água, bandeira não se apresentam como simbólicas em si mesmos (…) no mínimo isso está sempre ligado a uma ação. Basílio, João Crisóstomo e Ambrósio entenderam muito bem isto. De que adianta celebrar a eucaristia em Cálice de prata ou de ouro, se o Cristo está passando fome nos pobres? A maior parte do ensino sobre realidade social de Basílio, João Crisóstomo está em seus sermões realizados nas sagradas liturgias.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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