Numa linguagem fácil e atraente a sra. Dulce Chacon acaba de
publicar o resultado de suas pesquisas sobre “A criança do Recife e os
seus problemas”. A palavra fácil, aqui, é empregada naquele sentido de
funcionalidade tão carente em tantas obras sobre o assunto e que deixa
o leitor, muitas vezes, desconcertado pelo abuso de uma terminologia
que não lhe é acessível.

O livro não esconde, também, aquela permanência poética,
através de relatos, diálogos e fantasias que habitam o mundo complexo
da criança. Permanência que a autora, em boa hora, deu ênfase ao
incorporar a experiência poética de um Carlos Pena Filho e de um Carlos
Moreira. E embora o livro seja o resultado de uma pesquisa objetiva e
com uma finalidade científica, não seria a poesia uma nota esdrúxula no
seu contexto.

Aí estão livros como Les Enfants Terribles, de Jean Cocteau. O
mundo infantil é tão necessariamente onírico e os seus mistérios assumem
características tão próprias, que seria altamente prejudicial trazer a
criança para a realidade quase unilateral do adulto, em certos momentos.
É bastante, ainda, lembrar o poema de Jorge de Lima – O Mundo do Menino
Impossível – poema cuja temática é o “faz de conta” – aquela
transposição para o irreal como uma realidade concreta, viva, animando
todo um Universo Misterioso, e banal para o adulto.

Ainda é Jorge de Lima que no seu poema Santa Dica diz: “Ela
nunca comeu terra / Quando ela era pequena” / – definindo uma
permanência de virtudes na santa, virtude que eu diria muito
nordestina, porque aqui a geofagia é um hábito bastante disseminado e
cuja explicação seria mais fisiológica do que psicológica.

O livro da sra. Dulce Chacon vem enriquecer no Recife a
bibliografia pedagógica infantil, partindo do esforço inicial de
racionalização dos métodos de ensino moderno, dando ao professor
primário diretrizes, se não novas, pelo menos mais atuantes, oferecendo
ao educador meios normais de diálogo, recomendando à família quais os
pontos básicos de eficiência, não somente do rendimento escolar como
também no sentido da normalização da criança fora do âmbito da escola.

Detendo-se o leitor um pouco na página 114 e lendo o relato do
aluno G.E. ficará espantado com a história que este menino conta. Há de
permitir a autora que eu o transcreva, para que os leitores possam
medir qual o limite entre a realidade e a ficção, a realidade e o
absurdo, a realidade e o mundo primitivo que ainda é o Recife.
“Tinha 9 anos e estudava numa escola particular num
“corgo” de Beberibe. A casa era de taipa, entre outras. Não tinha
quintal, nem para um bate-bola e o quartinho ficava fora de casa. Em
cima da mesa da professora estava uma pedra pequena. Eu era novato, mas
vi com meus olhos, os colegas pegando no “xeixo”. Botavam na palma da
mão levantada para o ar e saíam da sala. Fiz o mesmo, peguei a pedra e
fui no quartinho. De volta, vi um passarinho, um sabiá pinicando a
areia, aí “avoei” o “xeixo” na cabeça do pássaro. Caiu esbagaçado,
batendo as asas, ensanguentado. Peguei ele e botei no “borso” da calça.
Na pressa, esqueci a pedra. Quando me “assentei” na sala de aula, a
professora perguntou:
– Quedê a licença?
– Que licença? Perguntei eu e me “alembrei logo, ah!
sim, o “xeixo”…
– Aquilo se trata pela licença, burro! Venha cá, disse a
professora…
Fui murcho. Ela botou três caroços de milho na ponta da
mesa e agarrou a minha mão para cima dos milhos. Aí, pegou a palmatória,
onde estava escrito “acalenta menino chorão”. Mais que depressa puxei a
mão e a palmatória foi com “sustança” na ponta da mesa, batendo na mão
dela. A dor foi tão grande que gemeu. Chamou um rapaz, aluno grande da
classe e mandou pegar na minha mão e dar meia dúzia de ” bolos” quentes.
Aí a palmatória tá-tá-tá caiu com força, quase lascou minha mão com dedo
e tudo. A dor foi tanta que tranquei os dentes. Parecia que a mão estava
queimada. Ardia como brasa. Quando saí tremia de medo, as pernas bambas,
mas não chorei. Comecei a roer a unha. Estava cansado, doído e as mãos
inchadas”.

Os quadros demonstrativos da pesquisa apresentam uma divisão
por classe econômica. Pelo que se observa, são as classes chamadas
pobres, aquelas que sofrem o maior índice problemático, seguidas pelas
classes média e rica. Naturalmente que os sintomas emocionais são
universais e não têm preferência por classe, mas é possível acrescer
que a fome, o desconforto, os reflexos agressivos dos pais são muito
atuantes como fatores causais no processo dos distúrbios emocionais.

Recentemente, em entrevista concedida à Revista do Globo,
revista naturalmente não especializada, o escritor Jean-Paul Sartre,
respondendo a uma pergunta do repórter sobre o que ele achava dos
testes, expressou-se com muita habilidade, dizendo-os “monstruosos” e
acrescentou – “a tolice, para mim, é um fato resultante da opressão.
Jouhandeau disse – “os tolos mostram sempre o ar oprimido que lhes
convém”. Mas o interessante é que a opressão esmaga os tolos e também
as crianças. E faz as crianças tolas.

A opressão é um termo genérico e envolve as mais variadas
formas. O fator econômico não incide, às vezes, diretamente mas,
através de relações as mais diversas, inclusive na competição do mundo
moderno, no esforço de alcançar certos valores míticos.

A criança, nunca ausente, repete as imagens paternas da
angústia, da neurose, da auto-referência e da própria loucura. Em que
pese o bom senso, o amor, a dedicação da autora, nada será feito
enquanto o homem persistir em vingar-se da miséria em vez de
combatê-la.

Diário de Pernambuco
27 de novembro de 1966
João Batista Pinto

Nota: Em homenagem aos 100 anos da escritora, educadora e
pesquisadora Dulce Chacon, nada mais oportuno do que trazer aos dias
atuais sua pesquisa em escolas primárias da época. Sua constante
preocupação com o ensino e sua modernização é motivo de orgulho para
Pernambuco.

Recife, 10.09.06

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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