A Igreja vive, no período de 330 a 410, época em que viveram Basílo Magno e João Crisóstomo, uma justaposição ou acomodação à nova ordem imperial após o edito de Milão em 313, quando este decreto fez cessar a perseguição aos cristãos. O antigo fervor religioso diminuiu e os interesses do império penetraram no interior da Igreja. É neste contexto, que aparecem em Cesaréia da Capadócia (hoje Kaeseri na região central da Turquia) e Antioquia os dois ícones da Igreja oriental antiga: Basílio de Cesareia ou Basílio Magno e João, cognominado de Crisóstomo, que tem sua origem em Antioquia mas, exerce sua atividade pastoral como bispo, em Constantinopla. A Igreja de Antioquia já é um centro tradicional e antiga, fundada pelo apóstolo Paulo, onde o cristianismo vive seu esplendor. Constantinopla, ao contrário, começa somente agora a aparecer no cenário eclesial influenciado pela presença do imperador que desloca a sede política de Roma para esta cidade.
Os dois são padres gregos e assim sendo os padres gregos, se comparados aos latinos, são muito mais místicos e do ponto de vista do compromisso social, muito mais radical.

A distância entre Basílio (330-374) e João Crisóstomo (350-407) é de apenas 20 anos. Os dois então são quase contemporâneo mas, como Basílio morreu jovem, 44 anos, por ocasião de sua morte João Crisóstomo apenas começava.

O pensamento social de Basílio a quem BIGO(1983), chama de o mais economista e o mais representativo dos padres, está de modo especial expresso em: sermão contra os ricos, sermão contra a ganância, sermão no tempo da fome e da seca e cartas. Basílio é tão amado pelos pobres que numa ocasião em que entra em conflito com um magistrado que não quer respeitar a liberdade de uma mulher que se recusa a casar Basílio é intimado a comparecer em um tribunal. Logo a cidade inteira fica sabendo disto que de todos os lados chegam operários, lavradores, lavadeiras armados com pedaços de pau para defender o bispo. “É graças à intervenção de Basílio, que o magistrado salva a vida” (MEULENBERG, 1998, P. 72).

Numa carta que escreve a alguém que tinha sido promovido a magistrado escreve: “não menospreze os pobres, mas tome a respeito de seus súditos sempre decisões tão justas, que deixem a balança completamente em equilíbrio. Deste modo, o seu zelo a favor da justiça se manifestará a todos que estão sob sua autoridade. E quando a sua conduta lhes escapa, haverá ainda Deus, que vai apreciar o seu comportamento” (In MEULENBERG, 1998, p. 28).

Seca não é só uma realidade do nordeste do Brasil; a província de Capadócia, onde ficava Cesaréia também passava por essa aflição e que, às vezes se prolongava por mais tempo; por isso o abismo entre pobres e ricos cresce. É por uma ocasião desta que Basílio se dirige aos ricos da cidade dizendo: “quando alguém ama ao próximo como a si mesmo, não possui mais do que o próximo” (Sermão contra os ricos in Meulenberg, 1998, p. 29) e mais adiante acrescenta: “você está em busca de um vestido precioso? Uma túnica de um metro e meio e um manto sobre ela são suficientes. Você quer gastar seu dinheiro num banquete suntuoso? Um bom pedaço de pão enche a barriga” (Idem p. 29).

O discurso social de Basílio se aproxima do discurso social dos demais padres da antiguidade cristã. Todos estão de acordo em afirmar e dizer que o supérfluo corrompe e que também o rico é pobre “pois o pobre é a pessoa que tem necessidade” (Idem p. 30). Dirigindo-se aos ricos Basílio diz: “você jura com sua língua o que sua mão com o anel de brilhante no dedo está negando. Anda jejuando, rezando e participando em todas as reuniões devotas mas quando se fala numa pequena contribuição para aliviar o sofrimento dos desamparados, se recusa obstinadamente a dar” (Idem p. 30). Isto tudo está acontecendo na cidade. No campo, a situação é pior ainda como atesta Basílio no sermão contra os ricos: “o rico traz uns bois, põe-se a semear e acaba por recolher os frutos que pertencem a outro. Quando o prejudicado protesta leva pancadas, quando se atreve a começar uma briga, então é chamado a comparecer diante do tribunal, onde o aguarda uma condenação, seja para a prisão ou qualquer outro tipo de castigo (Idem p. 31).Em 1986 o tema da campanha da fraternidade da CNBB era sobre a problemática da terra com o lema: “terra de Deus terra de irmãos” e os subsídios da AEC do Brasil, naquela ocasião, contava uma história de fato aconteceu muito semelhante ao que acontecia no tempo de Basílio. Eis o fato: “No interior de um estado do Brasil, morava José, proprietário de uma pequena terra, da qual tirava toda a alimentação para sua família. Ao todo eram 10 pessoas, José vendia um pouco de leite, milho feijão, macaxeira e outros pequenos produtos e ainda criava porcos, galinhas e cabras. Seu vizinho, o Sr. Augusto era dono de uma grande fazenda. Possuía gado de raça. A cerca da terra de José era sempre estragada pelo gado. Ele não tinha dinheiro para consertá-la. O Sr. Augusto aproveitava-se da pobreza de José e largava o gado na terra do vizinho. Nas primeiras vezes os dois conseguiram dialogar. Parecia que o Sr. Augusto iria respeitar as terras de José. Após alguns anos, José percebeu que vizinhar com Augusto seria impossível. Augusto não respeitava a situação de José. Certa noite, em choro profundo de dor e angústia, comunicou para a família que estava sendo obrigado a vender a sua pouca terra ao próprio Sr. Augusto. Deveria procurar um novo trabalho. A tristeza tomou conta da família inteira. Hoje a família de José, mora numa periferia de uma grande cidade. Seu filho mais velho está preso porque foi apanhado num assalto pela polícia. Seu pai José já morreu. O sr. Augusto hoje é dono de uma grande fazenda, não sabe quantas cabeças de gado possui.” (AEC, 1986, p. 8)

Em “Morte e Vida Severina”, um auto de Natal de João Cabral de Melo e Chico Buarque de Holanda retrata esta situação da problemática do latifúndio na música conhecida como funeral do lavrador: “Esta cova em que estás com palmos medida é a parte que te cabe deste latifúndio. É de bom tamanho, nem larga, nem funda é a parte que querias ver dividida” (Funeral do Lavrador â¿¿ Chico B. de Holanda).

Em outras palavras, Basílio diz a mesma coisa: “Não é mesmo assim que de tudo isto lhes sobrará somente um metro e meio de terra? E umas pedras que vão ser suficientes para cobrir o seu miserável corpo” (In NEULENBERG, 1998, p. 31). Quando se fala de propriedade não há quem não deixe de lembrar de Marx que afirmava que toda propriedade é um roubo. Marx não disse nada de novo pois os padres da Igreja, 1.400 anos antes, afirmaram que a propriedade é fruto da iniqüidade e é também uma usurpação. No sermão contra a ganância Basílio retrata esta realidade: “Diga-me o que é seu, de onde é que você o recebeu, para trazê-lo a este mundo? Os ricos se comportam como expectador que, no teatro, já ocupou o seu assento,mas agora quer excluir os outros, que chegaram depois dele, porque considera o espaço que está aberto para todos como propriedade privada (…). Os ricos começam apoderando-se dos bens que estão à disposição da comunidade, e em seguida, declaram que estes são propriedade sua. Se cada um estivesse contente com os bens de que precisa para suas necessidades fundamentais, e deixasse o resto para os necessitados não haveria mais nem ricos nem pobres. Ou não é verdade que você é um ladrão, quando não se considera apenas como um administrador dos dons que recebeu mas como proprietário? Ao faminto pertence o pão que você guarda; ao nu pertence o vestido que você deixa no seu armário; ao descalço pertence os sapatos, que junto de você estão apodrecendo; ao necessitado pertence o dinheiro que você tem escondido na terra (Sermão sobre a Ganância in MEULENBERG, 1998, p. 33-34). É a partir desse pensamento que 900 anos mais tarde Tomás de Aquino vai elaborar o pensamento social da Igreja sobre a propriedade ao dizer, que ninguém é dono absolutamente de nada mas administrador ou dispensador dos bens. Esse é o pensamento oficial da Igreja confirmado pelo Concílio Vaticano II na Gaudium et Spes: “Deus destinou a terra com tudo que ela contém para uso de todos os homens e povos, de modo que os bens criados devem chegar equitativamente às mãos de todos. Todos têm direito de ter uma parte dos bens suficientes para si e suas famílias. Aquele que se encontrar em extrema necessidade tem o direito de tomar, dos bens dos outros, o que necessita (GS nº 69 in Terra de Deus, Terra de irmãos, 1986, p. 49). Basílio não somente pregou mas deu testemunho e se consagrou a realizações sociais e de caridade, “construiu um verdadeira cidade, a Basilíada, com hospedaria, asilo para velhos, hospital, com uma ala reservada às doenças contagiosas e alojamentos para empregados e operários. Era uma verdadeira cidade operária com forno comunitário” (HAMMAN, 1995, p. 116).

À semelhança do que acontece no nordeste brasileiro, a região da Capadócia onde fica Cesareia, sede do bispado de Basílio, sofre as conseqüências do flagelo da seca. O bispo não cruza os braços e deixa escrito um sermão para um tempo de fome e de seca. Este texto guarda esta semelhança com o capítulo 14 do profeta Jeremias que também trata da seca.

Qual deve ser a atitude das comunidades cristãs diante do problema da seca?
Primeiro: pobre ajuda pobre: “se for pobre, então você conhece certamente um outro que é ainda mais pobre. Pois acontece que você tem ainda comida para 10 dias e outro só para um” (Sermão no tempo da fome e da seca in MEULENBERG, 1998, p. 36).
Segundo: que a seca inspire os fiéis a buscar, de novo, o caminho da fraternidade: “Não sejamos mais impiedosos que os animais. Estes vivem dos frutos da terra como se fossem uma propriedade comunitária. Rebanhos de ovelhas pastam no mesmo morro. Muitos cavalos procuram sua nutrição no mesmo campo. E todos os animais deixam os outros tomarem a comida de que precisam. Amontoamos para o próprio uso o que é destinado a sustentar a todos e reservamos só para nós mesmos o que pertence a muitos (…). Imitemos o comportamento da comunidade dos primeiros cristãos. A fraternidade era inquebrável (Idem p. 36).

Finalmente Basílio espera que seus fiéis não busquem ajuda dos usurários “quando um homem desprovido do necessário, pede um empréstimo, então a desumanidade atinge o seu cúmulo, se depois não ficar contente com o dinheiro restituído, mas ainda quiser tirar proveito da miséria (…) você tem mãos, você tem uma formação profissional. Não seria verdade que você, um homem altamente capacitado, pode explorar um dos seus talentos para a realização de uma vida digna (Idem p. 39).

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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