Nos 100 anos de Dona Canô

A relação com Deus, que é o único Santo, implicava para os judeus em um estado de pureza.E essa exigência se traduzia por regras de todos os tipos, de modo especial,com relação ao alimento, e por numeroso ritos de purificação. Vemos no Evangelho Cristo entrar em conflito com os fariseus porque os seus discípulos não lavavam as mãos antes das refeições (esse era um rito de purificação). O livro do Levítico detalha abundantemente as prescrições a esse respeito : comida, sexualidade, doença, a sepultura, etc.Naturalmente, que esse excesso de ritos levou a religião de Israel a um legalismo em detrimento das disposições interiores.

Por isso a Nova Lei do Evangelho se insurge frontalmente contra essa ordem de coisas: “coam um mosquito e engolem um camelo …” Mas mesmo no Antigo Testamento os profetas já se insurgem contra essas exterioridades:”Deixai de me trazer oferendas inúteis, seu perfume é, para mim, um horror…socorrei o oprimido, sede justos com os órfãos…” (Is. 1,1-17). Cristo chega mesmo a transgredir essa tradição, por exemplo, tocando no leproso e em mortos para ressuscitá-los,comendo com pecadores famosos, acolhendo a prostituta Madalena.

A festa da Purificação de Maria, celebrada com tanto entusiasmo em Stº Amaro, reflete esse costume judaico a que ela se submeteu, como o próprio Cristo na sua Apresentação ao Templo e com a circuncisão. O livro do Levítico cap.12, 1-8 tem como título “Purificação da mulher depois do parto”.O texto diz :”Javé falou a Moisés : Se uma mulher conceber e der à luz um menino, ficará impura durante sete dias , como por ocasião da impureza de suas regras. No oitavo, dia circuncidar-se-á o prepúcio do menino e, durante trinta e três dias , ela ficará ainda purificando-se do seu sangue. Não tocará coisa alguma consagrada e não irá ao santuário. Quando tiver cumprido o período de sua purificação, levará ao sacerdote, à entrada da Tenda da Reunião, um cordeiro de um ano para holocausto e uma pombinha ou uma rolinha , em sacrifício pelo pecado. O sacerdote os oferecerá diante de Javé , realizará por ela o rito de expiação e ela ficará purificada do seu fluxo de sangue”.

Foi esse ritual que Maria, a Mãe de Cristo cumpriu e que fundamenta essa comemoração litúrgica e popular em Stº Amaro, cidade que vive em função dessa festa com seu novenário,com missas e a grande procissão no dia 2 de fevereiro. A primeira missa foi celebrada em 18 de outubro de 1700 – foram 90 anos de construção daquela bela igreja. Mas a paróquia já é de 1608, portanto, no próximo ano será celebrado o quarto centenário daquela paróquia.

Essa festa da Purificação ( que na liturgia atual é chamada de Apresentação do Senhor) é motivo de um orgulho especial para os santamarenses. O município gira em torno de uns 60 mil habitantes, mas, pode-se afirmar com segurança, que esse número quase dobra durante os festejos que começam com o novenário , no dia 24 e tem a conclusão no dia 2 de fevereiro.A cidade tem seus filhos ilustres do passado ( José Silveira é um deles, com seu Centro de Cultura de Stº Amaro, o NICSA) e do presente, como Zilda Paim , a historiadora da cidade e que tem todos os folhetos dessa festa desde 1918 (ainda hoje ela espera que o prefeito João Melo reabra o seu Memorial); Pe. Sadoc , na jovialidade dos seus 90 anos , irá presidir a missa das 10 horas do dia 2 de fevereiro.Ele tem um célebre sermão proferido nessa festa em 1944 – “Mulier, quid fecisti?”, “Mulher o que fizeste ?” É a pergunta de Deus a Eva após a desobediência no Paraíso. Diz Sadoc: “No Paraíso que nunca deveria ter sido perdido, estabeleceu-se esse diálogo, entre Deus e a mulher, o Senhor de tudo e a criatura sem nada, um Juiz de santidade e amor e a ré prevaricadora e infeliz”( ver livro : Pe Sadoc, 90 anos, pároco, orador e amigo,p. 97).

Mas a festa desse ano tem um motivo especial : são os 100 anos de Dona Canô. Festa da Purificação é sinônimo dela. Ela tem sido a grande presença por quase um século nessa celebração. Seu filho Caetano Veloso dedicou a Maria um hino no qual não se sabe onde começa a mãe da terra e termina a Mãe do céu :

“Doce riso de Mãe, Doce Mãe dessa gente morena,Luz das mais claras manhãs, que conduz para a luz mais serena.
Mãe, doce riso de mãe, todo pleno de tua presença vive o nosso coração, Mãe da Purificação”.
Que a Mãe da Purificação abençoe Stº amaro, seus filhos, os visitantes e, especialmente, D. Canô, nessa data rara, em pleno vigor de mente e de alma.

Professor de Antropologia da Uneb, da Cairu, da Faculdade 2 de Julho. É membro do IGHB, da Academia Mater Salvatoris. Colabora nas Paróquias da vitória e de S. Pedro. 

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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