Na coluna anterior, analisamos um pouco as iniciativas das gravadoras em vender música digital na internet a preços considerados razoáveis. Por enquanto, são apenas promessas, longe de uma concretitude a curto prazo, mas podemos esperar boas novidades a partir do início de 2007. Isto é, se não acontecer o que tem ocorrido com freqüência nos últimos anos, de a própria indústria boicotar iniciativas promissoras de mercado. Não seria exatamente uma surpresa. Uma reportagem recente do New York Times revelou, e agora para surpresa de todos, que a RIAA (Recording Industry Association of America) pode se voltar exatamente contra as gravadoras que tentarem vender músicas na internet a um preço considerado abaixo do mercado. Ou seja, é a própria associação se colocando contra os grandes “players” que tanto foram defendidos por ela desde o surgimento do MP3. É quase uma piada, de péssimo gosto, por sinal.
É difícil, para qualquer um, analisar friamente as estratégias de mercado da indústria fonográfica sem cair no campo ideológico. Quando você coloca o lucro rápido, fácil e exorbitante como prioridade máxima – em qualquer setor da economia, formal ou informal – é óbvio que vários degraus precisarão ser pulados e muita gente vai ficar para trás. Impetrando a metáfora no nosso campo de análise, a música digital, é fácil entender a relação: milhares de pessoas não podem comprar CDs; outras milhares até podem, mas não aceitam o preço cobrado; outras milhares podem e aceitam, mas preferem baixar de graça na internet. Esses três grupos distintos representam um prejuízo (abstrato) e um não-lucro (concreto) para as gravadoras. Faz diferença? Nenhuma. Não no mundo ocidental.
Não faz diferença porque, enquanto se tem milhões de pessoas que não podem comprar música, você terá um punhado delas que vai gerar receita suficiente para cobrir todas as outras. Ou seja, com o perdão da palavra cada vez mais demagógica, teremos uma pequena “elite” que comprará CDs suficientes para cobrir todos os custos da indústria e ainda gerar lucro. Do lado de lá, a indústria garante que a internet e o MP3 fazem que as compras sejam reduzidas e, por tabela, elas fiquem no prejuízo. No entanto, não é preciso ser PhD em Economia para analisar as tabelas de lucros e dados públicos sobre vendagem de CDs e DVDs musicais para perceber que, na última ponta, não tem ninguém (indústria/gravadora) tendo lucro reduzido na ponta do lápis.
E aqui é onde entra o papel da China, agora o país-vedete de qualquer tese econômica e análise de mercado. Quando você tem um país que não possui essa elite que responde por todo o resto da população, ou você entra no jogo ou pede para sair. No caso da China, como em vários outros países asiáticos e do Leste Europeu que passam por um choque de capitalismo, o cenário não é exatamente de falta de uma elite, mas cultural. Você até tem a elite, mas diante da gigantesca população periférica ou da cultura de pirataria encruada na mente das pessoas, você pode simplesmente reduzir sua margem de receita, vender seu produto a preços competitivos e, de quebra, ainda vai lucrar o mesmo – ou mais – do que em outras praças, por conta do fator quantidade. É exatamente o que ocorre na China de hoje e, com algumas diferenças, em vários países do Leste Europeu que aos poucos aprendem como o capitalismo de heranças socialistas funciona.
Todo mundo já ouviu falar, ou pelo menos leu em algum lugar, que o “mercado” de filmes piratas na China é simplesmente abissal. Não somente filmes, mas entretenimento, em geral. Os mais puritanos até dizem que, na verdade, o abismo da pirataria toma conta de todas as frentes de produção na China, mas isso vamos deixar para os especialistas de outras colunas e revistas. O que queremos mostrar é que, num passe de mágica, as gravadoras e estúdios estão entrando no jogo da China, reduzindo preços em escalas de 400%, 500% e estão rindo à toa com os lucros mesmo assim.
Para termos um exemplo concreto, a Warner começou a vender DVDs de filmes (na China) por preços a partir de US$ 1,70. E não são filmes clássicos ou antigos, o primeiro do pacote é nada menos que “Superman – O Retorno”. A ação começou apenas dois meses depois da estréia no cinema. Em entrevista ao jornal estatal China Daily, o diretor-geral da filial chinesa, Tony Vaughn, simplesmente disse que “esta é uma das novas iniciativas contra a pirataria da China Audio Video Warner em colaboração com o governo”. São quase 10 mil lojas pelo país vendendo o DVD original a preços módicos e, pasmem-se, começou muito antes da venda oficial nos Estados Unidos. É meio inacreditável, mas foi uma resposta à altura contra o mercado pirata. E funcionou. O próprio diretor-geral da Warner chinesa explicou, ainda em entrevista ao jornal estatal, que as principais razões para a pirataria na China é o alto preço das cópias legais.
Pelo menos em Xangai, os primeiros discos originais do filme podiam ser comprados há alguns dias em algumas lojas, ao preço de US$ 2,70. Também foram lançados o pacote com um documentário sobre a produção do filme por US$ 3,50 e uma versão com acabamento mais simples US$ 1,70. A companhia também ampliou sua rede de distribuição, dos 5 mil pontos de venda iniciais para 8 mil. Assim, antigos vendedores da versão pirata se transformaram em vendedores oficiais.
O Brasil está longe de ser uma China, em todos os fatores possíveis e imagináveis. No entanto, 180 milhões de habitantes você não encontra fácil ali na esquina. O problema é que talvez nossos 180 mil elitizados também não.
( 05.11.2006)