Lug Costa 5 de outubro de 2006

– A cidade do mortos foi invadida pelos vivos sem casa e sem comida.
Nela repousavam restos mortais centenários venerados e intocáveis.
Os mortos foram repatriados em terrenos divididos: uns ficaram na sala, outros no quarto, outros no banheiro e na cozinha.
Mas que sorte terrível! Nem mesmo depois da morte é possível encontrar a paz dos adormecidos?
Há quem pense em transformá-la em cidade de turismo.
Será que ganhar dinheiro com os corpos sepultados não encoleriza a justiça divina?
Quem veio para a cidade jamais pensou em ser desalojado, pois tinha a certeza que aqui era a parada definitiva, já que o lacre de sete palmos de terra impossibilita qualquer desejo de saída.

A cidade dos mortos foi sorteada pelos vivos.
Estariam contentes os corpos pisados, molhados, umedecidos no seu próprio túmulo?
Para eles acabou-se o tempo das leis, dos direitos e deveres, das proibições e deliberações.
Nela ninguém sente a necessidade de convenções sociais. Tudo é de ninguém. O tudo e o nada se confundem em cada palmo de terra. Não existem donos e deserdados.

A cidade cresce assustadoramente com o passar dos anos: chega a mãe, o pai, o filho, o neto. Não precisa atingir a idade, nem escolher o sexo. Suas portas estão abertas noite e dia ao público.
Nem todos os visitantes ela aceita o corpo e a alma.
Muitos ela prefere doar ao fogo, às águas, aos dentes dos animais e a outros amigos seus.
Existe um objeto que é incapaz de passar pelas torres das sentinelas sem ser percebido: o relógio do tempo.
Do grande portal de entrada da cidade para dentro só existe a eternidade. Presente, passado e futuro coincidem em cada esqueleto dissecado.
A cidade dos mortos está sendo confundida com a cidade dos vivos.
Túmulos se transformam em casas. Casas abrigam defuntos ainda vivos.

(21.06.2004)                   

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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