Quando dizem que adultos são tão ou mais crianças do que os próprios
filhos, você pode até ousar admitir ser uma frase batida e piegas. Eu
admito. No entanto, admita também que não é uma verdade apenas contextual,
mas uma verdade tão factual que chega a ser embaraçoso. O fim de um
relacionamento, mesmo aquele que não tenha tido tanto significado assim
para você, é “o” momento no qual podemos parar em frente ao espelho e
admitir que somos muito mais crianças do que nossos filhos ou sobrinhos.

Quem não é filho único, deve lembrar bastante. Na infância, passamos o dia
inteiro procurando um motivo para arrumar confusão com o(a) irmã(o). Vale
qualquer coisa. O mínimo detalhe é suficiente para causar gritaria, puxão
de cabelo, unhada, empurrão, fofoca e choro-ro-rô. E assim os anos vão
passando e os irmãos sempre brigando, brigando, brigando. O que os pais da
gente diziam? Os meus, quando esgotavam todos os argumentos racionais,
filosóficos e humanitários que nenhuma criança de sete anos entende,
falavam: só briga dois, quando um quer. “No dia que você não quiser brigar
(apontando para mim), sua irmã vai lhe deixar em paz. Mas é claro que eu
também queria puxar o cabelo dela…!

Um relacionamento só acaba quando um quer. Simples e óbvio assim. Tentamos
racionalizar, expor argumentos filosóficos e humanitários, às vezes até
familiares, mas não adianta. Quando um quer, acabou-se e pronto. Tentamos
acreditar em tudo aquilo que a gente sabe que não é verdade. Chega a ser
ridículo ler algo tão ululante, mas o fato é que na hora esquecemos que o
sentimento, quando chega, não dá garantia alguma de que vai ficar. Ele pode
ir embora bem mais cedo do que o previsto. Quando é o nosso que vai embora,
sempre conseguimos arrumar todos os motivos para explicar o fim e às
vezes somos até convincentes.

Acontece que quando é o sentimento da outra pessoa que acaba, viramos
criança novamente e não entendemos o óbvio. Achamos impossível racionalizar
o “como ele(a) não me ama mais, se eu amo tanto ele(a)?” e outras pieguices
do gênero. Sabemos que é exatamente assim que funciona, sabemos que não foi
a primeira ou segunda vez, mas não conseguimos pensar desta forma. Coisa de
criança mesmo. A gente sabe, mas não faz.
Todo fim de relacionamento, excetuando pífios pormenores, é basicamente
igual. Na hora do fim definitivo, é indiferente o tempo que passaram juntos
ou a intensidade dos momentos. Pois só acaba quando um quer e, na ocasião,
esvaece tudo aquilo que achamos saber. Mesmo quando o relacionamento já
está desgastado. Até a hora em que um lado resolve tomar uma atitude e
abrir o jogo. Uma decisão sempre unilateral.
Sempre? Então com você foi diferente? Vocês dois chegaram juntos à
conclusão de que não queriam mais um ao outro, acabaram ao mesmo tempo e
ambos queriam terminar e ficaram satisfeitos ao mesmo tempo? Tá certo, não
irei contra-argumentar. A opção de isolar-se na ala das exceções é sua. Eu
fico com a média comum. Aquela média dos noventa e nove vírgula nove por cento.

Aos sete anos, todo mundo manda você escovar os dentes. E você não escova.
No máximo, finge que escova. Passa uma água na boca e pronto. Aos sete
anos, você já tem pleno discernimento de que precisa escovar os dentes, de
que se não escovar vai ficar com mau-hálito, criar bactéria, tártaro e os
dentes vão ficar verdes. Aos sete anos, você sabe disso tudo e nem assim
escova os dentes.

Adultos, sabemos que relacionamentos podem durar (para sempre, acreditam
alguns) ou podem acabar. Temos plena consciência de que aquela paixão
avassaladora às vezes tem uma causa específica e isolada, às vezes é
duradoura, às vezes passageira. Plena consciência de que pode se
transformar em um sentimento maior… ou pode acabar, como em tantas outras
vezes.
Enfim, sabemos de tudo isso de cor e salteado – dizemos até que, no assunto,
temos mestrado, doutorado e pós-doutorado; mas na hora que o outro nos
manda escovar os dentes, a gente não vai, não quer ir. E aí a gente chora,
faz bico, argumenta, finge. Fingimos muito. Sempre tem aquele pessoal que
diz: “acabamos, mas continuamos muito amigos”. É um fingimento só não maior
do que escovar os dentes sem abrir a torneira. Ficar amigo daquela pessoa
pela qual ainda se nutre um sentimento forte, após vê-la navegando em
outros mares, só funciona como válvula de escape. Mas sempre tem quem goste.
Só resolvemos escovar os dentes à força ou na base da fiscalização: ver a
pessoa com outro(a) é um exemplo. Ou a pessoa saindo da sua vida à força:
uma mudança para outra cidade/país, para ilustrar uma situação comum. Por
mais que a vida – e a outra pessoa – nos mostrem como é importante escovar
os dentes, quantos males podem surgir se não escovarmos, batemos o pé e
ficamos intactos, imóveis, impronunciáveis. Procurando motivos para não
escovar os dentes. Tão óbvio, só mesmo sendo muito criança.

Aos doze anos, ninguém precisa mais nos mandar escovar os dentes. O
problema é que adultos nunca chegam aos doze anos.

( 30.05.2002)

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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