Quem mora sozinho por muito tempo, enfrenta dois fenômenos padronizados que só variam de intensidade, de acordo com a pré-disposição de cada um. O primeiro e mais fácil de perceber é a liberdade social e psicológica que, uma vez experimentada, pouquíssimos desejam voltar atrás.
Desaparecer por uma semana e não dar satisfação a exatamente ninguém sobre onde esteve ou quem com esteve, é bem parecido com o ato de pular de pára-quedas. A adrenalina daqueles poucos segundos pode ser temporária, nunca se tornando necessária. Fica aquele gostinho de quero mais, logo esquecido pela rotina semanal. No entanto, a adrenalina pode atingir um ápice contagiante em certas pessoas, a ponto de você transformar o paraquedismo em hábito e, depois, em vício. O resultado é que você nunca mais vai querer abandonar o paraquedismo. A liberdade passa a ser uma condição de pré-existência na sua vida.
O segundo fenômeno, em geral, é uma conseqüência direta do primeiro e só é percebido depois de vários anos, quase sem querer. É o desapego a uma série de conceitos sociais que, com o tempo, você percebe que são pueris, inócuos e, quase sempre, inúteis. Pode ser um reles desapego material. E também pode ser um desapego com si mesmo. É quando você entende que “viver bem com pouco” deixa de ser uma questão de mera sobrevivência para se tornar um estilo de vida. Menos compromissado com opiniões alheias, problemas insolúveis e paixões insalubres.
Alguns estudiosos desocupados definem esse comportamento como uma volta às origens primitivas do homem como figura social. Seria a acentuação dos nossos instintos mais básicos de individualidade. Não é à toa que tantas vezes uma relação afetiva, ou até mesmo a tentativa de alguém furar esse bloqueio primitivo de liberdade, coloca em xeque toda uma vida e sanidade mental que levaram anos para amadurecer.
Você supera aquela fase de tratar sua casa como o seu feudo, seu domínio. Fica para trás aquela noção de ter exatamente as coisas onde você quer que estejam, na bagunça ou organização que você entende. Mesmo que isso signifique, eventualmente, esquecer comidas podres na geladeira, ter garrafas vazias espalhadas pelo quarto, nunca ter comida para oferecer às visitas e considerar aquelas latas de sardinha suas melhores amigas nos tempos difíceis da ressaca.
Com o tempo, você percebe que seu feudo é apenas mais um conceito abstrato, dentre tantos outros que você se forçou a esquecer. Que existe uma floresta lá fora que também não vai lhe exigir contratos, nem amarras e, quem sabe, estará cheia de outros animais errantes e primitivos como você. E que um teto nada mais é do que isso: um teto. E tetos são iguais em qualquer lugar. Podem ser maiores, mais frios e até mais confortáveis, mas continuarão sendo apenas tetos – mesmo que seja o seu teto.
ENTRE O ERRADO E O ERRANTE –
Está provado, historicamente, que qualquer grupo ou pessoa que fuja a um padrão imposto pela maioria terá dois caminhos a percorrer: ou se transforma no anormal, no bicho-do-mato, no outsider – para usar um termo moderninho; ou então vai precisar perder muitas paixões e amizades na vida até conseguir largar essa adrenalina primitiva de ter as rédeas da própria vida, sem metáforas e sem amarras.
O problema é que, quanto mais o tempo passa, mais acentuada é a impressão de que você precisa de outras pessoas o tanto quanto elas precisam de você – e para defender-se, o mínimo a ser feito é tentar não ser uma necessidade para ninguém, por mais que você tenha precisado de alguém, um dia, para sobreviver.
Para os amigos e paixões de uma vida, eventualmente você será a pessoa errada na hora certa. Quando, na verdade, você apenas pode ser um errante sem lugar e sem hora para chegar. No final, nada vai importar. Aquelas pessoas que aprendem a conviver com esses animais errantes e desapegados, às vezes até aprendem a admirá-los e, ocasionalmente, ficarão lhe esperando à lareira quando você voltar da floresta, cansado, ferido e livre. Enquanto outras, simplesmente vão desaparecer sem olhar para trás. Como se nada tivesse acontecido.
Como os drogados nos guetos, as pessoas primitivas reconhecem o vício e admitem as possíveis conseqüências a longo prazo. O grande revés não é saber quando parar, nem por quem parar. Mas, sim, por quê parar. Sempre. E enquanto você continua a vagar como um andarilho pela vida das pessoas, sem mais procurar por um motivo, a única verdade absoluta dentro de sua mochila é o velho ditado de que, enquanto você sorrir, o mundo sorrirá com você. Mas chore, e você irá chorar sozinho.
( 13.08.2006)