e o Icone ortodoxo da Dormição de Maria

A Festa da Irmandade da Boa Morte integra o calendário turístico-religioso não apenas da cidade de Cachoeira, mas da Bahia. Não se trata de um mero fenômeno turístico, cheio de aspectos folclóricos, que atraem curiosos, como pode aparentar à primeira vista. Esta Festa tem uma história que comporta uma profundidade que ultrapassa as próprias integrantes da Irmandade, os participantes e os numerosos turistas que vêm participar do evento. As origens dessa Festa se transportam ao início do cristianismo, tendo a sua fonte de referência no Oriente cristão.

Origem

Há várias especulações sobre a origem da Irmandade da Boa Morte. Odorico Tavares é de opinião que a devoção começou no início do século XIX, em Salvador, na igreja da Barroquinha, em torno de 1820 . Os responsáveis pela organização teriam sido os jejes, que tinham o objetivo de louvar Nossa Senhora da Boa Morte e da Glória ( pois a festa tem como base litúrgica a Assunção de Maria aos céus), e ao mesmo tempo, levantar fundos para a compra de cartas de alforria e dar proteção e encaminhamento aos negros fugidos.

Algumas irmãs, já no início do século XX , teriam se deslocado de Salvador para Cachoeira, recriando lá a Irmandade da Boa Morte. O historiador Luis Cláudio Nascimento, natural de Cachoeira, coloca que o culto litúrgico da Irmandade era realizado, no princípio, na Ordem Terceira do Carmo, que era a igreja das elites locais. Depois as irmãs se transferiram para a igreja de S. Bárbara, da Santa Casa de Misericórdia, na qual existem imagens de nossa Senhora da Glória e da Boa Morte. Depois mudaram-se para a igreja do Amparo ( desaparecida em 1946). Ficaram ainda usando a Matriz, indo posteriormente para a igreja da Ajuda.
Há opiniões que divergem com relação à procedência étnica originária das pioneiras: há a hipótese de que teria sido um grupo de alforriadas queto a base de origem do grupo. Outros vêem na tradição jeje a tônica mais forte . De qualquer forma, parece que o núcleo central da Irmandade fora constituído por uma variada procedência étnica. Mas Pierre Verger salienta que a Irmandade da Boa Morte, na Barroquinha, era dirigida por mulheres nagôs.

É bom salientar que o final do século XIX e o início do século XX, no Recôncavo, foram marcados por uma atmosfera de progresso e uso de novas tecnologias : passa-se da crise açucareira para o alento do fumo ( que interessa ao capital alemão), inaugura-se o serviço de navegação a motor. Todo esse conjunto de convergências favorece, e muito, os contatos entre os muitos negros do Recôncavo, estreitando mais os seus laços.
Outros autores querem ver o surgimento da Irmandade da Boa Morte em Salvador dentro do grande fluxo de interesses e lutas pela independência, que teria gerado uma distensão entre senhores e escravos, unindo-os numa mesma luta comum.
Alguns pesquisadores querem ver a formação da Irmandade dentro da conjuntura abolicionista em torno dos negros islamizados que em 1835 tiveram uma tentativa libertária totalmente esmagada. Uma das presumíveis líderes, Luiza Mahim, estava envolvida na organização da Irmandade após a sua fuga de Salvador para Cachoeira.

As Irmandades, as Confrarias e o catolicismo popular

As Irmandades tiveram, desde as suas origens, um sentido social. Foram de expressão inter-étnica, com obrigações de colaboração mútua entre os seus membros. Tudo isso seria para fins múltiplos: desde a compra de alforria, festejos, pagamentos de Missas, caridade, vestuário, até a possibilidade de um funeral decente.
Essas notáveis mulheres cachoeirenas deixam aos pesquisadores um desafio sem fim: os rituais, a leitura etnográfica, seus segredos, a persistência da cultura negra numa manifestação de origem católica antiquíssima.
Mas o que tem sobressaído aos olhos do público é o aspecto externo do culto, o seu simbolismo católico e a sua apropriação afro-brasileira. É importante salientar a grande habilidade dos antigos escravos para cultuar a religião dos dominantes sem abrir mão de suas crenças ancestrais. Valdemar Valente tem a tese de que o africano, possuidor de um universo religioso muito rico, chegando aqui foi obrigado a adotar a religião católica: “Habituado àquela e obrigado por esta, ficou com as duas crenças”. Gilberto Freyre, tratando do mesmo tema, diz que, na falta de consciência de superioridade de raça no Brasil, ela apoiou-se na fé: “A ortodoxia religiosa foi condição de unidade política”. Em Sobrados e Mucambos, ele afirma que o nosso catolicismo serviu para a integração brasileira. Mas que esse catolicismo não era o dos cânones tridentinos, mas sim aquele que, no contato com as formas religiosas africanas, “como que se amorenou e amulatou, os santos adquirindo dos homens da terra uma cor mais quente de carne que a européia.”

As Confrarias e Irmandades foram, assim, elementos catalisadores, agregadores da cultura dos negros. Podemos observar que, nos países onde os governos proibiram a formação de Irmandades, as religiões negras se dissolveram, como na Colômbia. O contrário se deu no Brasil, onde havia os costumes das Confrarias dos negros, permitindo, como consequência , a sobrevivência dos seus cultos. Não será precipitado afirmar que a expressão religiosa do século XVIII foi a da religião das Confrarias. Bastide ainda afirma sobre o assunto que foi no interior das Confrarias e Irmandades que se fizeram as assimilações e o próprio sincretismo.
A procissão é considerada um elemento muito importante para entendermos o catolicismo da colonização, especialmente aquele do século XVIII, que é um elemento fortemente lusitano e marcou a feição e expressão do século seguinte. Diz Gilberto Freyre sobre as procissões: “Desfilavam-se Irmandades, Confrarias, as Ordens Terceiras, uma variedade de opas, banda de música, penitentes nus da cintura para cima…”

Nesse contexto, celebração religiosa era sinônimo de procissão. As próprias “Ordenações do Reino” determinavam certas procissões como obrigatórias e só as pessoas que estivessem “a mais de uma légua” é que estavam dispensadas delas . Em muitas procissões as autoridades estavam presentes, além dos senhores de engenho e fazendeiros que vinham do campo somente para esse acontecimento. Em cidades como a do Recife, na tradicional Procissão do Encontro ( de Jesus com Maria) na Semana Santa, além de incalculável multidão, é da tradição estar sempre presente, ainda hoje, o governador. É como em Salvador: não há político, de todos os partidos, que não deixe de ir à venerável festa do Senhor do Bonfim.
Foram as Confrarias que, não somente ajudaram a organizar o catolicismo popular, mas também o impulsionaram. Nelas, as tradições africanas começaram a sua adaptação à nova realidade que se lhes impunha e, desse modo, foi-lhes permitida a conservação das suas tradições. Mas não se pode deixar de lembrar que esse processo de convergência ( do negro para o catolicismo e vice-versa) , nas Irmandades e Confrarias , não foi construído sem provocar tensões nos “administradores oficiais do sagrado” – esses agrupamentos representavam sempre a força do leigo em detrimento do poder clerical, oficial , canônico, e não podiam deixar de ser uma ameaça ao status quo religioso.

Explicação do ícone da Dormição que é usado sob a forma de imagem na Irmandade da Boa Morte

O termo “Boa Morte” refere-se à morte e subida aos céus de Nossa Senhora. E ele não é um mero eufemismo ou simples adjetivação para nomear esse momento da morte-vida de Maria, que tem suas raízes na tradição dos primeiros séculos do cristianismo. Essa tradição religiosa do cristianismo católico foi trazida pelo português, dentro das múltiplas expressões litúrgicas que a devoção da época permitia.
Havia uma crença generalizada entre os cristãos, sobretudo no Oriente ortodoxo , de que Maria , morrendo, teve o seu corpo preservado da corrupção a que todo mortal é submetido. Ela fechou os olhos na terra para abri-los no céu, de forma definitiva, com o seu Filho Jesus Cristo. O Oriente chama a esse momento de “Dormição” e o Ocidente latino, mesmo que o dogma da Assunção só tenha vindo com o Papa Pio XII em 1950) tem diversos títulos para essa festa : Nossa Senhora da Glória, da Vitória, da Assunção.

Essa festa da Irmandade da Boa Morte é um dos momentos mais ricos e ainda bem presentes no nosso tempo, em que o sincretismo-mimético acontece de modo original e bem particular. Com isso quero dizer que , ao lado do jeito afro de realizar a devoção, de permanecerem elementos culturais da cultura negra bem nítidos, por causa do contato com o catolicismo barroco português-abrasileirado, a Irmandade conservou uma das crenças da devoção católica em torno de Maria , a Mãe de Cristo ( e que depois se tornou um dogma) , tradição das mais antigas no mundo cristão.

S. João Damasceno ( falecido em 749) tem um célebre sermão no dia da festa :
“Hoje a Virgem Maria Imaculada, que não se ligou a nada de terrestre , a Virgem plenamente nutrida de pensamentos celestiais não foi devolvida à terra. Aquela que trouxe a vida para todos , como poderia ela ser submetida à morte ? Como verdadeira filha de Adão, ela sofreu a sentença levada contra seu pai e sua descendência. Seu próprio Filho não a recusou. A Mãe do Deus vivo ( Jesus Cristo) bem que mereceu ser a Ele associada…Como a morte poderia encará-la? Como a corrupção poderia invadir este corpo onde a vida de toda a vida foi acolhida?”

Por esse motivo teológico é que os orientais falam em “Dormição”, que em Cachoeira se chama “Boa Morte”. Como vimos, esta crença foi largamente partilhada pelos cristãos orientais e latinos. Há textos apócrifos , isto é, não considerados oficiais pela Igreja Católica – mas no grego esta palavra significa : secretos, reservados – que situam esse acontecimento ( da morte de Maria) entre os anos 3 e 50 após a morte e ressurreição de Cristo. Um dos primeiros teóricos dessa fé da Igreja foi S. Gregório de Tours ( século VI). Mas foram os santos Alberto Magno, Tomás de Aquino e Boaventura que, no século XIII, deram uma elaboração mais teológica à crença ( Theo p.902). Essa festa já era celebrada em Antioquia no século IV e na Palestina no século V. Parece a alguns autores que a data de 15 de agosto teria sido escolhida como comemoração no Oriente, pelo Imperador Maurício( 580-603) para marcar a inauguração de uma festa dedicada “`a Virgem Maria que subiu ao céu”.

O dia 15 de agosto foi, durante longo tempo, o dia da festa nacional da França; foi o rei Luis XIII ( 1601 – 1643 ) quem consagrou aquele país a Nossa Senhora ( daí a razão da célebre catedral de Paris ser chamada Notre-Dame). Ele pediu que nesse dia se fizesse em cada paróquia, uma procissão em honra de Nossa Senhora . Há dados históricos que apontam para a celebração dessa festa ( Dormição ou Assunção ) desde o fim do século II, no Oriente. Gozava do prestígio popular desde o início do século VII no Império Bizantino.
Os chamados “evangelhos apócrifos” falam da morte de Maria em Jerusalém e do seu sepultamento em Getsêmani. Ainda há lá uma pequena capela, mantida pelos ortodoxos não latinos, que mantêm essa devoção.

Santo Epifânio de Chipre (falecido em 403), confessa com franqueza a sua ignorância sobre o fim da vida de Maria, mas acrescenta com grande eloquência que esse silêncio se explica por causa “da grandeza transcendente do prodígio, para não tocar de estupefação o espírito dos homens”.
O ícone da ” Dormição” se constrói em torno de dois pontos complementares: de um lado está Maria no sarcófago aberto, deitada, mas em contraste com essa posição, há o dinamismo do Cristo, que , em pé, está na vertical e ao centro. Aquele, que é a Vida, agora traz nos braços a alma daquela que está sem vida no sarcófago, à espera de uma mão poderosa que a erga da morte. A inversão é clara, pois, nos ícones em que Maria é representada como Mãe do Filho de Deus, ela é que O tem nos braços – mas agora é justamente o contrário: é Cristo quem a tem nos braços, como uma recém-nascida, símbolo da vida nova na qual ela entra agora de forma definitiva .
A diferença da Ascensão de Cristo para a Assunção de Maria ( ou Dormição) é que na primeira , Cristo se eleva aos céus, e aqui Maria é elevada. O ícone , portanto, tem duas leituras : a primeira se refere à morte de Maria e a segunda diz respeito à sua elevação ao céu ( isto é, à Assunção ou Dormição como é chamada no Oriente).
Há hinos litúrgicos que celebram esse momento e que cantam assim:
“Vós não sois apenas Elias , que subiu ao céu, e nem apenas como Paulo que foi até o 3º céu, mas vós fostes introduzida até o trono real do vosso Filho, na visão face-a-face, na alegria de estar perto dEle” .Há um outro ainda que diz : ” A Esposa Imaculada, a Mãe daquele em quem o Pai se compraz, aquela que Deus predestinou para ser a habitação de duas naturezas ( a humana e a divina) sem confusão, neste dia entregou a sua alma pura ao Divino Criador”…

Concluindo

Em Cachoeira há, na sede da Irmandade da Boa Morte, uma imagem que é de inspiração nos ícones orientais – é a imagem principal, em torno da qual se realiza a celebração festiva . Encontramos lá, na entrada da capela uma imagem de Maria deitada no sarcófago ( que é uma réplica, pois a imagem oficial fica conservada num oratório reservado às Irmãs). Na iconografia oriental não há imagens e sim foi privilegiada somente a pintura em madeira, ou tela, chamada ícone – isso vem de uma tradição remota que conserva resquícios da visão vétero-testamentária sobre o uso das imagens mas também reflete uma rejeição ao uso greco-romano das imagens como objeto pagão de seus cultos. O ícone comporta uma dimensão religiosa, espiritual, até mística e sempre quis ser objeto de culto litúrgico. Na visão ortodoxa é como se fosse uma visualização da verdade que a Sagrada Escritura quer falar ( “é uma janela aberta para o céu”).
É importante sublinhar essa adaptação ao ícone realizado na devoção cachoeirana. Aqui é uma imagem de Maria deitada, mas que revela a fonte de onde veio : do ícone oriental. E mais do que isso: a própria festa se liga com essa crença cristã dos primeiros séculos. Falar em “Boa Morte” não é um mero eufemismo, ou adjetivação inconsciente de uma celebração cristã assumida pelas integrantes negras dessa Irmandade. Significa muito mais : é como se tivesse sido conservado no inconsciente coletivo do catolicismo barroco-português-abrasileirado uma sintonia com um elemento da fé cristã, que, naturalmente, revela o lugar que Maria sempre teve na tradição cristão do Oriente e do Ocidente dos primeiros dias . Esse elemento foi como que “congelado”, captado e reinterpretado pela Irmandade sem perder a beleza do seu vigor primeiro, mas fundido com os elementos que esse catolicismo “amorenado” ( como diz Gilberto Freyre) teve e tem como elementos próprios .A expressão afro dessa Festa, na sua reinterpretação da crença cristã é exuberante, plástica e mística : as irmãs não se “apresentam” apenas uma vez por ano ( como no carnaval tradicional) , mas vivem o seu dia-a-dia em torno do evento, que se projeta nas suas vidas ( ¿ em cada sábado nos reunimos para rezar¿, disse-me uma irmã na última Festa da Boa Morte) . É como se elas quisessem entrar, mergulhar no movimento da morte-vida que a Festa celebra. É como se elas todas estivessem também celebrando as suas próprias “boas mortes” que a primeira ( a morte de Maria) quer , de algum modo, anunciar.

(Professor da Universidade Estadual da Bahia-Uneb, da Fundação Visconde de Cairu, da Faculdade 2 de Julho, Membro do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia e da Academia Mater Salvatoris)

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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