Depois de um sábado inteiro de improdutividade diante da síndrome da folha branca, cai a noite e você continua parado olhando para a tela do computador, com inúmeros assuntos imaginários e sem conseguir bater sequer um parágrafo. Coça a barba, medita e o pensamento vai longe.
É incrível como todo mundo quer se dar bem nos sábados à noite. Ou o povo vai para lugar de azaração, onde as pessoas escolhem a dedo quem vão “pegar”, ou para um lugar cheio de casal. É o pior dia para beber. Mas… antes isso do que ficar assistindo Zorra Total.
Toma banho, coloca um chinelo, bota a calça, pega o último Halls preto e vai até a barraca da esquina. Para se inspirar, nada melhor do que uma partida de sinuca, Reginaldo Rossi na radiola, uma rodada de caju-amigo e um miúdo de galinha com farofa. As horas passam e você ainda faz anotações no caderninho, de novo, sabendo que amanhã não vai lembrar das palavras-chaves.
Volta para casa. Consegue abrir o Word antes de dormir- para lembrar de escrever quando acordar, porque agora o sono não deixa.

:: DOMINGÃO DO MERCADÃO ::

Ressaca, dor de cabeça e gastrite a mil por hora. De novo. Você olha para o barrigão e faz de conta que está espantado em perceber como seus músculos abdominais esponjados estão crescidos. Olha de novo. Não consegue ver os dedos do pé. Relembra as recomendações médicas: em pleno domingo de sol, uma caminhada na praia e uma salada de frutas fariam bem.
Mas uma cervejinha com cuscuz e charque, também.
Aos domingos, não há lugar melhor do que mercado público. É onde você pode tomar café da manhã com cerveja sem aqueles olhares enviesados de pessoas que acham isso estranho. É onde você encontra o melhor cuscuz com feijão, o melhor miúdo de galinha, rabada e chambaril… enfim, o cardápio mais requintado da cidade a um preço honesto.
Chega lá, 10h da manhã, já está cheio de papudinho tomando aperitivo e comendo aquele bife gostoso ao molho de colorau e cheio de nervo. Delícia. Não entendo como os vira-latas não comem quando a gente joga um pedaço para eles. Todos uns luxentos. De vez em quando, um pedaço de bife cai no chão – o dono da barraca acha que ninguém viu e coloca no prato do cliente mesmo assim. É a sua chance de dizer “eu vi” e conseguir 50% de desconto. Quase sempre dá certo.
A tarde começa a chegar e você ainda não terminou a crônica que vem matutando desde a sexta-feira. Para falar a verdade, nem começou. Só que não querem deixar você ir embora do mercado. O dono da barraca até disse que dava desconto em outro bife, mas desta vez sem cair no chão, porque ele vai fechar o quiosque para ficar bebendo com a turma.
Você fica mais um pouco. O dono da barraca vizinha aprochegou-se e começou a tomar um negocinho e a puxar uma boa prosa. Depois chega mais outro. É praticamente uma confraternização familiar. E você fica p*** da vida porque esqueceu o caderninho em casa e, agora, está perdendo verdadeiras pérolas da filosofia de botequim.
O assunto da roda, quando não é futebol e política, é mulher. Mas, desta vez, não é qualquer mulher. Seu Agenor, que passou dos 55, o dono da barraca 1, está casado com uma menina de 17 anos. “Estou apaixonado”, diz ele. Você olha, sorri e questiona: “mas Agenor, o senhor nessa idade ainda não aprendeu a lidar com essas peças que a vida prega? Essa menina vai ferrar tua cabeça… vão te acusar de pedofilia”.
O dono da barraca 2 gargalha: “Deixa ela ferrar! 17 anos já tá quase velha! Quem não quer uma mulé de 17 anos em casa? Toda durinha e sem pelancas, ô meu deusy, queria eu!”. De fato, contra um argumento desses, não dá para aconselhar nada ao Seu Agenor. Os papudinhos perguntam se o Agenor ainda dá no couro, ou seja, se ainda faz gol de placa ou se é apenas goleiro- que usa só as mãos. “Dois gols todo dia! E sem viagra, viu!”, proclama, sabendo que ninguém acreditou. Perguntam se você é casado. Você diz que é: “com uma branquinha dos olhos verdes, o maior fogo”.
Você pede para Seu Agenor ir buscar sua esposa. Silêncio. Olhares. Ele volta com sua branquinha de olhos verdes: uma garrafa de 51 e duas bandas de limão. Nem você consegue se segurar com tamanha falta de noção, mas alguém da mesa vizinha grita: “Pago uma cerveja para esse gordinho peludo aí! Pode descer que tá por minha conta!”
E assim você economizou mais uns trocados. O sol se prepara para ir tomar uns aperitivos também. Já são 16h, melhor voltar para casa. Tem a crônica para escrever. Tem a fofinha que pode ligar ou passar um e-mail. Com tanta confraternização familiar no mercado, você até tinha esquecido da bendita. Antes de voltar para casa, melhor seguir a recomendação médica e comer uma salada de frutas. Seu Agenor, desça um caju-amigo, esprema um limão e embrulha uma “fatia” de Montilla Abacaxi para viagem, pois eu vim “dispés” e a estrada não é longa, mas eu canso mesmo assim.

:: SEGUNDA INGRATA ::

Final de tarde do domingo. Você chega em casa meio cambaleando, procurando o controle remoto da televisão. E lembra que não tem mais televisão. Coça a barba e abre o Word. Vai para o terraço, acende um charuto, pega o resto daquele licor na geladeira e qualquer livro inútil para ler. O tempo passa. Acende outro. Capota e dorme no chão com o livro na cara.
Meia-noite. Abre o olho e tenta se localizar. Lá está você, deitado no terraço, suado e descabelado. Olha para o relógio. Suspiro de alegria. Afinal de contas, acabou o final de semana e até que foi bem produtivo, etilicamente falando. Sente-se revigorado, pronto para a segunda-feira ingrata que está por vir.
Nada de crônica, é verdade. Faz de conta que não aconteceu. Abre o Word de novo, coça a barba e resolve escrever a história de Seu Agenor, só para não esquecer amanhã quando acordar. Como você não confia muito na memória, aproveita e escreve o percurso até chegar e voltar do mercado… e sem querer, dá luz a uma crônica-besteirol em menos de trinta minutos. Conclui: escrever não é tão difícil assim, só precisa de uma boa história. E de um caju-amigo.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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