Escrever poderia ser um negócio bem mais fácil. Bastava não ter alguém do outro lado para ler. Quase todas as crônicas são escritas durante o fim de semana. Tudo por conta de uma hipocrisia super ranzinza de que, durante a semana, não se deve perder tempo produtivo de trabalho com abobrinhas que não terão, sequer, o caráter social de embrulhar peixe no mercado.

:: SEXTA-FEIRA ::

Ao sair para tomar uns aperitivos, as idéias começam a aflorar. No desenrolar da biritagem, vez ou outra vem o pensamento: isso rende uma crônica. Tem sido assim nos últimos seis anos e o processo também acontece nas segundas, terças, quartas e quintas-feiras. A diferença é que somente na sexta eu juro que vou lembrar de tudo no sábado. Eventualmente, carrego no bolso um bloco de notas e, também eventualmente, esqueço em casa. É quando o salvador dos poetas falidos e o martírio dos pseudo-cronistas entra em cena: o guardanapo. Quando estou sozinho no templo, digo, no bar, para não pagar mico, rabisco rapidamente alguma coisa usando palavras-chaves. Cada palavra-chave rende um ou dois parágrafos e são simples de entender. Exemplo prático:

cerveja + mulher feia = acumular crédito no céu.
cerveja + mulher bonita = retribuição dos céus.
mulher feia sem cerveja = missão apocalíptica de deus.
cerveja + cerveja = o nirvana.
O problema é, de novo, jurar que vou lembrar no sábado pela manhã o que diabo significam as palavras-chaves. Isso quando consigo entender aqueles rabiscos todos manchados, pois é comum esquecer o guardanapo/bloco em cima da mesa e molhar tudo depois de algumas horas.

:: SÁBADO DO ESQUECIMENTO ::

Sábado de manhã: ressaca, dor de cabeça, gastrite a mil e a eterna jura de que nunca mais vou beber sem fazer feira para o outro dia. A geladeira, de tão vazia, parece que faz eco quando é aberta. Terminado o asseio matinal e à frente do computador para escrever, não dá para lembrar de absolutamente nada das filosofias do dia anterior. Aliás, como eu cheguei em casa ontem à noite? Não faz mal: hoje estou inspirado e vai sair algo menos inútil.
Surge a síndrome da folha em branco. É quando você fica com o olhão grudado na tela branca do Word, toda limpinha, achando que está inspirado, porém não consegue digitar sequer um parágrafo interessante. A tela branca fica ali parada por uma, duas horas. É o tempo em que você fica brincando com o computador, esperando que a crônica caia do céu. Abre e-mail, entra em algum site, abre MSN, faz download, fecha MSN, vê o tempo passar. Fecha o Word. Acha que vai escrever melhor depois que se distrair com algum joguinho leve, explodindo a cabeça de alienígenas.
Entra no jogo, mata o universo inteiro de aliens e enjoa. Abre o Word. Vê a folha em branco. Lembra que tem reportagem atrasada que ainda não fez e precisa entregar na segunda-feira e que devia estar trabalhando em vez de cronicando. Passa do meio-dia. Mas amanhã ainda é domingo, dá tempo.
Consegue rabiscar algo supostamente engraçado, mas logo em seguida vê que não tem graça alguma. Às vezes, uma página inteira ou duas. Fica uma porcaria. Fecha o Word. Hora do almoço, precisa comer algo. Na cozinha, acabaram até as tradicionais latas de sardinha. O pão está tão mofado que parece o alienígena do jogo! Ah, tem nissin-miojo, mas acabaram-se os fósforos para acender o fogão e ferver a água.
Volta para o computador. Abre o Word. Podia chamar alguém para almoçar fora, trocar umas idéias. Melhor chamar uma amiga. Pois, se chamar um amigo, o almoço pode virar cervejada e só terminar de noite. Fecha o Word. Telefona para a amiga X, depois a Y, depois a Z. Nenhuma aceita, acham que é cantada. Você insiste que só quer almoçar e voltar para casa, porque precisa trabalhar. Elas respondem: “vai enganar outra, eu leio suas crônicas!”. Sem poder contra-argumentar, desiste.

:: SESSÃO DA TARDE ::

O jeito é almoçar qualquer bagulho na rua. Come rápido para voltar logo, pensando no texto. Não faz nem questão da terceira cerveja antes do almoço em homenagem a Chico Science. Chega em casa. Pega uma Malzebier de sobremesa, bem doce. Abre o Word. Começa a escrever. Pára na metade, lembrou de um assunto melhor, mais engraçado. A tarde só está começando e ainda tem pela frente mais da metade do final de semana. Melhor esfriar a cabeça um pouco. Tenta ler o jornal do dia. Bate o sono. Não, não pode dormir, se não vai terminar deixando a crônica para outro dia e nunca termina!

Fecha o Word. Pega uma segunda sobremesa, porque cavalo manco não anda, só canta no Calypso. Coloca um filme para assistir. Dorme na metade. Acorda duas horas depois. Ainda faz sol. Abre o Word. A tela branca faz você lembrar de uma fofinha que ficou de dar sinal de vida e até agora nada. Morgada geral. Um cineminha seria ótimo para espairecer. Mas você lembra que cinema no final de semana é monopólio de casais se beiçando. Desiste. Pensa em chamar a irmã. Lembra que ir a cinema com irmã é atestado oficial de incompetência. Fica com a consciência pesada de achar isso. Mas ela também deve pensar o mesmo, então está tudo bem.
Desiste da crônica pelo sábado. Melhor trabalhar, só assim consegue saldar os fiados no bar e as contas atrasadas. Abre o Word. Trabalha um pouco. Fica puto da vida novamente. Já prometeu a si mesmo que, trabalhar final de semana, nunca mais. Fazer o quê, é o jeito e é a vida, porque se vaca voasse, chovia leite. E a noite está apenas começando para uma simples crônicazinha que não sai.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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