O começo do século 20 se caracteriza pela expansão colonial européia, no terceiro mundo. É também desse período a expansão religiosa com a vinda de congregações dos diferentes impérios, para evangelizar (=civilizar) os povos invadidos. Conscientes ou não, esses missionários, trataram de convencer os bárbaros de que eram inferiores, impondo-lhes as idéias, a língua, comportamento e, inclusive, a cortesia das metrópoles (práticas, modos, etiquetas da corte) – Roma, Paris, Londres, New York… O período anterior tinha sido de separação entre igreja e estado. A igreja, na república, havia perdido o status de sustentadora da monarquia ao forjar a convicção que ser cidadão brasileiro era ser católico. Por isso, a igreja do Brasil exulta com este novo momento chamando-o de a hora da providência, pois, aí, poderia reformular seu projeto de reconquistar o poder.
1. O melhor caminho para facilitar a implantação dos valores que interessavam aos colonizadores e reforçar o poder eclesiástico foi trazer grupos religiosos que ensinassem nos colégios católicos e educassem as aristocracias locais. Como futuros governantes elas garantiriam o poder dos bispos-príncipes. Foi assim que os missionários aqui chegaram e se dedicaram aos filhos dos barões do café, sem preocupação em conhecer o país colônia, nem indagar porque a elite ficara tão rica. Capricharam na moral: não roubar o patrão, não mentir para o patrão, ser obediente ao patrão… Durante 50 anos, 80% da classe dominante passou pelos colégios católicos, mas não foi evangelizada. No máximo, aprenderam os interesses da cristandade repassados como conteúdo na catequese. Enquanto isso, o povo mantinha suas tradições religiosas, com uma pintura católica, para não destoar do comportamento social.
2. Os anos 50 são marcados pela emergência do laicato (Ação Católica), com a volta para a classe operária, para as favelas… assumida por figuras carismáticas como D. Fragoso, D. Hélder Câmara… que se converteram ao povo. O Concílio Vaticano veio legitimar essa tomada de consciência produzida no meio do povo de Deus com forte influência de 100 bispos (de 3.000), vindos do NE e da AL e depois em Medellín (com cerca de 15 bispos). Desse comprometimento com causa dos pobres, surgiram santos, mártires e profetas. Mas, 80% dos padres, religiosos e bispos permaneceram com os ricos e só 20% foram para os pobres. As escolas e universidades, na quase totalidade, continuaram formando as elites, inclusive gente que participou de gabinetes de ditadores. Esse movimento durou uma geração, de 50 a 80, quando a igreja voltou à “grande disciplina” para “acabar com a confusão” e “recuperar os fiéis que migram para os hereges”. Esse discurso serve para disfarçar a volta da hierarquia católica para às elites e para que a religião voltasse a ser a cobertura da aliança do poder eclesiástico com as classes dirigentes (Reagan, Bush…). Mesmo conhecidos anticlericais, aceitam negociar com a hierarquia a liberdade de culto e os preceitos morais, em troca do silenciamento de quem assume uma teologia crítica.
3. O segredo de uma igreja libertadora é o redescobrimento do Evangelho e descoberta da realidade. Não é disso que falam os catecismos, a escolástica, o ensino dos seminários. Aí, não se aprende o Evangelho, nem a realidade de exploração que acontece na sociedade, até nas santas propriedades. No máximo, se ensina que Jesus nasceu e morreu. A Igreja Povo de Deus fez uma volta ao séc. XIII (Francisco de Assis) dizendo que Jesus viveu, tinha uma mensagem, sugeria um caminho; que ele falava dos pobres; que a Boa Notícia é estabelecer o protagonismo dos pobres, animar a esperança do povo… e dizer que também os profetas combatiam os reis e a elite. E que a má notícia é esse apego aos regimentos, às propriedades, aos templos, é falar mais do amor à igreja do que de Jesus… Pio X praticamente havia condenado qualquer aproximação com os socialistas e estimulou a rejeição da classe operária. Por isso, fica claro, que não é o povo que sai da igreja, é a igreja que abandona o povo. Por que os Pentecostais atraem mais? Ainda que de forma incompleta, eles falam de Jesus. Enquanto um padre convida seu colega visitante para concelebrar, um pastor o convida para visitar os doentes, no hospital…
4. Que fazer? Aonde vamos? Com quem estaremos no próximo período? A maioria da Igreja perdeu a fé. Na Venezuela, quando se fez um apelo aos médicos, os voluntários católicos foram infinitamente menos generosos que os comunistas. Em toda a história a hierarquia sempre prefere a defesa da burguesia, gosta da surdez e da cegueira, quer uma militância sem risco. Para os clamores que não consegue negar, inventa pastorais da moda como fachadas para ocultar seu descompromisso ou então, como na cristandade, cria instituições controladas para dizer que é a igreja quem resolve os problemas. Enquanto isso, o povo pede voluntários para alimentá-los com sua mística. Os 8 milhões de professoras, onde em cada 6 só 1 é de vocação, clama por educadoras. Quem vai ajudar a buscar caminhos com os 50% dos universitários pobres, já que seus diplomas universitários nada garantem? E os sem terra, os sem casa, os sem trabalho, os escravos rurais, os operários explorados, as mulheres violentadas e discriminadas, os índios, os negros… Quem vai até eles? O Evangelho não chama ninguém para uma instituição; chama para os trabalhos mais sumidos, para a experiência de ser tratada como inferior. Então, a ordem está dada – meter-se no meio do povo, como sal e luz. Ir lá onde o povo está, saber trabalhar com os outros que não são santos. É aí que se ama sem ficar aflito, é aí que se examina a coerência com o Evangelho e se celebra a manifestação de Deus. Mas, neste momento da conjuntura latino-americana e mundial, quando o grande império estadunidense desmorona, quando outros impérios emergem e quando a resistência se faz nacionalismo (Chaves, Morales…), onde estamos? Com quem ficaremos?
Resumo de palestra do Pe. José Comblin, realizada em São Paulo, em Janeiro de 2006.