Veja as afirmações a seguir; aparentemente, razoáveis. Baseiam-se numa santa matriz antropológica progressista contra uma dinossaura e materialista sociologia totalizante… etc. Não seria a armação de uma arapuca (sofisma) a serviço de uma escusa estratégia?
– O ser humano não existe: existem ingleses, chineses, americanos. O americano não existe: existem mulheres americanas, negros americanos, gays americanos. A mulher americana não existe: existem mulheres americanas negras, mulheres americanas gays. A mulher americana negra não existe: existem mulheres americanas de classe média, mulheres americanas negras, operárias,… Isto não é tudo. As classes sociais também não existem. Há grupos que se redefinem a cada circunstância: motoristas de táxi se dissolvem em corintianos ou palmeirenses, que se dissolvem em adolescentes ou velhos, que se constroem enquanto moradores do Bexiga ou da Lapa. A Lapa não existe: é uma construção imaginária, uma identidade geográfica criada segundo juízos de valor, experiências subjetivas, jogos de linguagem sedimentados historicamente.
– A história não existe: existem ficções, narrativas que podemos organizar conforme uma estrutura de começo meio e fim, mas que sempre irão trair a arbitrariedade básica com a qual cada sujeito compõe os dados da realidade. Lembre-se que sujeito também não existe. É um campo onde se entrecruzam percepções, desejos, linguagens. De resto, a realidade não existe tampouco.
Essas bobagens acima correm o risco de passar como senso comum e como verdades. São “raciocínios” relativistas que viram uma espécie de Bíblia da sabedoria pós-moderna e que levam ao culto contemporâneo à identidade: social, racial, cultural, sexual. Sob o signo da crítica ao coletivismo se entrincheiraram slogans, “contra a ortodoxia” e “viva a liberdade de crítica” e tornaram-se imediatamente palavras da moda. As grandes frases contra a fossilização do pensamento dissimulam o desinteresse e a impotência para fazer progredir o pensamento teórico. A famosa liberdade de crítica não significa a substituição de uma teoria por outra, mas a liberdade com respeito a todo sistema coerente e refletido; significa o ecletismo e a ausência de princípios e certo rebaixamento do nível teórico.
A crítica ao ser humano abstrato disseminada entre a esquerda pós-moderna e teóricos radicais dos movimentos negros e feminista, passa, hoje em dia, como coisa avançada. As raízes encontram-se exatamente no conservadorismo. No século passado, teóricos ultra conservadores, na luta contra a idéia de direitos humanos universais, aferravam-se à constatação empírica das diferenças. J. de Maistre em “Considerações sobre a França” dizia: “O homem (universal) não existe. Em minha vida, vi franceses, italianos, russos… Quanto ao homem, declaro que nunca o encontrei”. Mais de cem anos depois, o elogio da diferença vira tema da esquerda moderna. Como não podem deixar de lado o tema clássico da igualdade armam um jogo de palavras onde os seres humanos são diferentes, mas iguais crentes que estão provando a quadratura do círculo.
Tudo isso parece dizer que a luta contra as várias discriminações, está imbricada com a luta onde que afirma a identidade, o valor, a originalidade de um grupo. É verdade que, em si, não encerra nenhuma contradição. Só que quando o movimento negro diz que negro é diferente repete o que os racistas sempre disseram: legitima o enfoque da diferença e as distâncias são alargadas.
Essa atmosfera pós-moderna de muitos ambientes de esquerda, essas celebrações neobarrocas das diferenças, de apego às singularidades culturais… assusta muito pouco as cabeças conservadoras. O que provoca ojeriza na direita é, ainda hoje, 200 anos depois, o discurso dos direitos humanos, o discurso revolucionário da igualdade. O problema dessa e de outras ciladas, talvez se reduza a um mal-entendido lingüístico. Pois, só se pode defender quem é diferente em nome da igualdade, mas a defesa do diferente passa a se chamar, num modismo pós-moderno, defesa da Diferença (com maiúscula). Aí, a igualdade fica falando sozinha.
A crítica pós-moderna ao universalismo, em vez de formular uma crítica à teoria racial, apropria-se de muito de seus temas e reproduz os próprios pressupostos sobre os quais, historicamente, assentou-se o racismo. Assim, é uma falta de novidade requentar temas como fim da história, fragmentação do sujeito, anti-universalismo pós-moderno. O pior de tudo é insistir na fragmentação e no particularismo num momento em que, como nunca, o capitalismo se tornou uma realidade totalizante num grau sem precedentes.