“A competitividade, por sua natureza, é antiética,… ninguém sabe porque as pessoas competem…E a tendência é naturalizar a pobreza, a inferioridade de alguns…” Milton Santos, USP
1. INTRODUÇÃO
Nos últimos tempos, em quase todos os lugares, as palavras da onda tem sido produtividade, qualidade, eficiência, competência, resultados, colaboração, parceria, indivíduo, subjetividade… como se tudo isso fosse a grande descoberta dos tempos pós-modernos. Essas seriam marcas de alguém que acompanha o progresso, que não se fossilizou em jurássicos paradigmas de um tempo que já não existe.
Em geral, essa “nova” pregação vem ao encontro de um cansaço com as idéias do período anterior onde o acento tinha sido a preocupação social, a consciência política, a luta de classes, a ideologia, a transformação das estruturas e solidariedade universal. Tais preocupações, às vezes, subestimaram dimensões e valores (indivíduo, subjetividade, relação de gênero, geração de renda) que, recalcados, tornaram-se temáticas mobilizadoras.
É agressiva a divulgação dos novos valores. São, sobretudo, preocupantes as conseqüências sócio/ econômico/ político/ culturais de sua implantação – a exclusão de pessoas, de países e de povos. Isto demonstra que está em jogo mais que uma simples polarização entre dimensões complementares e necessárias de uma vida em sociedade (o individual e o coletivo, o micro e o macro). Junto com a compreensível tensão entre os dois pólos, parece clara a disputa entre duas visões de mundo, entre dois projetos de sociedade, onde de forma sutil, o eterno desejo de dominação ressurge maquiado de promotor do crescimento humano e estimulador do desenvolvimento do planeta. Onde residiria a contradição entre dar respostas aos problemas da existência dos indivíduos e empenhar-se nos esforços de transformação estrutural da sociedade para garantir vida digna e duradoura para seus habitantes?
Por isso, quando a palavra de ordem é que vença o melhor, é preciso estar atento e não cair numa armadilha. Em sã consciência, ninguém poderia ser contra o objetivo de se buscar o melhor. Ao contrário, é desejável que, em todos os campos, sempre vença o melhor. Mas, o que é VENCER, com que critérios se define o MELHOR? Em termos de desenvolvimento humano, o decantado progresso representa um avanço ou significa apenas uma pressa conveniente àqueles que estão a salvo da corrida?
2. Ronaldinho ou Thièry?
Nestes dias, toda a mídia esportiva voltou-se para a partida de futebol entre o Barcelona e o Arsenal. Os telejornais, os diários, as bancas de apostas, todos só tinham uma pergunta: quem é o melhor ¿ Ronaldinho Gaúcho ou Thièry Henry (referindo-se a dois conhecidos artilheiros)? Talvez, tenha sido a partida de maior atração do período. Um bem montado marketing convenceu a massa de torcedores que ali se disputava a maior habilidade e competência profissional de cada um dos jogadores e, por extensão, dos seus fãs. A população desavisada e estimulada sequer desconfiou que o grande ganhador era alguma empresa e os donos dos passes dos dois jogadores. Qualquer que ganhasse seria bom para eles e não para os milhares de torcedores.
Os jogadores sabiam disso, mas fizeram o jogo de cena, pensando na polpuda recompensa (somos profissionais pagos para jogar). Os técnicos aceitaram a tarefa de executores da farsa, como procedimento normal. Os donos das empresas felizes devem ter repetido: que vença o melhor! Não tocando nos nossos lucros, podem brigar pelas migalhas! E a torcida? Perdeu duas vezes: pagou, brigou com a outra, como se tivesse fazendo a disputa da sua vida. Daqui a algum tempo, os dois jogadores podem passar a atuar no mesmo time ou até mudar de time. Ninguém vai relembrar a antiga rivalidade dos dois.
3.A LÓGICA DA COMPETIÇÃO
Pode-se dizer que a maioria dos jogadores são competentes no ato de jogar bola. Porém, no jogo, como no trabalho social, não basta chutar bem a bola (eficiência), é necessário ter uma determinada meta – o gol – para onde orientar os chutes (eficácia). Até porque há gente, que ao fazer perfeitos chutes, faz também belos gols… contra. Então, ser competente ou estar capacitado está estreitamente ligado à estratégia de um determinado projeto, de uma determinada concepção de mundo.
A lógica da competição, entre outras coisas, a) Aceita a REALIDADE posta – acha normal o fato da INCLUSÃO/ EXCLUSÃO social; uma elite proclama a competição porque se situa por cima da carne seca. lucrando com a competitividade… dos outros; b) Propaga que a mola propulsora do desenvolvimento humano é a livre competição (na verdade, uma competição a qualquer preço, desligada de qualquer postura ética); qualquer medida para a proteção de pessoas ou de grupos seria uma inibição do crescimento; c) Afirma que a competição é o remédio contra o paternalismo e a acomodação e um fator de geração da fartura para o conjunto da população.
A estratégia da competição se reforça com o advento das modernas formas de produção e de gerenciamento, com a globalização da economia e com a organização dos novos blocos de poder, em disputa pelos mercados. Ela tem sido aplicada nos chamados países emergentes para atrair os mais capazes, com tino empresarial convidando-os a colaborar com o país na sua arrancada para o primeiro mundo. Enquanto isso, a maioria da população se digladia na ilusão de tornar-se um desses eleitos. Salve-se quem puder! Até provam que a tartaruga pode vencer um coelho numa corrida!
A lógica da competição espera das entidades de assessoria que sejam colaboradoras, que se façam parcerias. Parceria e colaboração aqui não têm o significado de tornar-se parte, de decidir conjuntamente, mas tão somente o sentido de meros representantes ou braços executores de diretrizes já formuladas por pessoas externas, de cima e de fora.
4 A LÓGICA DA SOLIDARIEDADE
A lógica da solidariedade também defende a competição e a competência como fundamentais para consolidar o desenvolvimento do mundo e estimular o aperfeiçoamento das pessoas. Para isso:
a) toma uma posição denunciando a realidade de desigualdade e não aceitando a realidade posta; postulando a necessidade da consciência e responsabilidade coletivas pela convivência entre as pessoas e com o universo; seguindo a convicção que o desenvolvimento do todo condiciona a felicidade e o crescimento individual; apontando soluções localizadas como paliativos que apenas reforçam a estratégia da exclusão; vendo na capacitação de elites a perpetuação da desigualdade porque serve ao projeto de acumulação e reprodução do capital, às custas da maioria.
b) defende uma estratégia que crie condições básicas de igualdade com o reforço ao protagonismo dos sujeitos populares e contribua para que pessoas e grupos sejam incentivados à mobilização, enfrentamento (e até rompimento) para estabelecer essas condições básicas de igualdade; defende um Estado que não tenha todos os controles, mas que sirva para estabelecer as condições básicas de igualdade; regule a acumulação do capital (não o mercado) e proteja os cidadãos na aquisição de seus direitos básicos; lute por condições básicas de competição onde as pessoas possam ir à luta, sem protecionismo, inclusive contra os que hoje proclamam que vença o melhor porque estão acima e além de qualquer disputa.
5. O DARWINISMO SOCIAL
Darwin forneceu as bases científicas (seleção das espécies) para o imperialismo. O darwinismo social levou o mundo às guerras mundiais, na primeira metade do século XX. Agora, está levando ao esfacelamento do tecido social: criminalidade, autodestruição… O darwinismo não é privilégio de empresários e políticos. Muita gente que se diz do campo popular, consciente ou não, colabora com essa lógica: a) quando aceita a despolitização das lutas econômicas (como se as iniciativas tivessem um fim em si mesmas); b) quando se presta a trabalhar no controle da mendicância, inclusive oficial (filantropia); c) quando não contribui para que lutas localizadas se transformem em mobilização pelo direito às condições básicas para todos. (Na lógica da solidariedade, o conjunto dos carentes se mobiliza pela solução de seus problemas); d) quando capacita pequenas elites, em laboratórios: boas creches, cooperativas que salvam pelo menos 20 (no universo de 20.000). Imaginam que tais experiências, sob controle externo favorável, (recursos, planejamento, criação de mercado) irão reproduzir-se; e) quando não reforça o protagonismo dos sujeitos populares, ao invés, apenas a continuidade de sua entidade.
Quando os esforços, mesmo localizados, se orientam para um movimento pelo direito de todos ou as pessoas e grupos se tornam protagonistas, as experiências alternativas (alfabetização, creches, oficinas, cursos profissionalizantes, padarias), tornam-se processos, deixando de ser fim em si mesmas e contribuindo com o estabelecimento da igualdade básica. Estabelecidas tais condições básicas para todos, então, abaixo o paternalismo e que vença o melhor!
( SP – 2006)