Reginaldo Veloso 15 de junho de 2016

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Isso mesmo, 50 anos depois! E o “Seminário Nacional de Liturgia”, organizado pela CNBB, neste começo de fevereiro de 2012, como início das comemorações do cinquentenário da Sacrosanctum Concilium, em que pese a brilhante assessoria do Professor Grillo, ninguém menos que renomado membro do corpo docente do Anselmianum, Roma, o qual nos brindou uma profunda e original reflexão de viés, sobretudo, antropológico, sobre a experiência ritual cristã, deixou em alguns e algumas de nós um profundo sentimento de frustração.

Certamente não por acaso, mais de uma vez, até a última sessão do Seminário, na aula magna da Vila Kostka, a feliz expressão conciliar sobre a Liturgia como culmen et fons, isto é, cume e fonte, da vida da Igreja (cf. SC 10), foi invertida: “fonte e cume”… Sintoma evidente de que, 50 anos depois do Concílio, prevalece e se agrava a ilusão ritualista, que aposta tudo numa boa e bela performance ritual, como se, celebrando bem, a vida da Igreja irá bem.

O Sacerdócio Comum dos Fiéis foi, sem dúvida, chamado em causa, realçado, e seu pleno exercício insistentemente cobrado, mas, exclusivamente, na perspectiva daquela “plena, cônscia e ativa participação das celebrações litúrgicas” (SC 14), isto é, o desempenho ritual.

De novo, fez-se ouvir a ressentida queixa de liturgistas sobre o quase total silêncio dos Bispos, no Documento de Aparecida (DA)[1] a respeito da Liturgia, que só é evocada per transenam, isto é, de passagem, em um ou outro tópico do mesmo.

Mas, começando pela repetição desta queixa, houve quem desse graças a Deus pelo fato de o DA nos ter prestado esse imenso favor, ao abordar de maneira profunda e detalhada tudo aquilo que, a nosso ver, é básico, prioritário e elementar:

  • um processo de evangelização capaz de juntar verdadeiros discípulos em torno da pessoa do seu Senhor e motivar, a partir desse encontro com Cristo, o autêntico testemunho destes discípulos numa sociedade carente de exemplo e profetismo[2];
  • a dinâmica do VER-JULGAR-AGIR[3], não apenas como método de reflexão, mas experiência espiritual de quem, de olhos para a realidade, é capaz de perceber os “sinais dos tempos”, avaliá-los com os critérios do Reino anunciado por Jesus, e ao perceber aí os apelos de Deus, responder aos mesmos com atitudes de conversão e ações militantes;
  • as Comunidades Eclesiais de Base, como experiência de refundação da Igreja: a partir de uma experiência eclesial de dimensões humanas, onde se vivencie de modo real a comunhão e a participação; uma vida comunitária, no seio da qual cada uma, cada um, é incentivado a descobrir suas potencialidades, seus dons, e exercer seu ministério para o bem comum; onde cada um, cada uma, toma consciência do compromisso pessoal e coletivo como “fermento na massa”, procurando exercer todo o seu potencial de influência, nos vários ambientes de vida, para que o “Reino de Deus”, o Mundo Novo, aconteça, “assim na terra como no céu”[4].

É, antes de tudo, isso que se precisa verificar, quando se pretende fazer uma abordagem séria da Liturgia. É por aí que se começa a entender e vivenciar o “Sacerdócio” cristão, que, antes de se manifestar na celebração, é experiência existencial, vivência da fé no cotidiano da gente, experiência do Mistério Pascal de Cristo, com certeza, que se cultiva e cresce e se aprofunda e se amplia numa vivência comunitária onde, na roda de diálogo, a vida de cada dia é relida à luz da Palavra que desvela e liberta, clareia o caminho e faz arder os corações, como na caminhada para Emaús (Lc 24,13-35), e cada pessoa e cada comunidade vão encontrando com maior clareza o seu caminho, assumindo novas atitudes e descobrindo seu papel, seja na vida interna da própria comunidade, seja na sociedade, a começar pela vida em família… Aí, sim, a celebração litúrgica, terá, sem dúvida, o caráter de culminância e condições reais de fortalecer a fé e será capaz, qual fonte “que jorra para a vida eterna”, de relançar, com novo ardor, cristãs e cristãos, discípulos-missionários, nos caminhos do Reino, “até que Ele venha”… Aí, sim, se cantará com toda a verdade o ofertório da vida, como bem celebra o clássico refrão: “Ofertar pra meu povo é dar a vida, a vida inteira oferecida!”.

O que pode ressoar em alguns ouvidos como cavilosa insistência, infelizmente, não pode ser dado como algo que naturalmente se pressupõe, como se de fato acontecesse na vida das pessoas e  na prática pastoral de nossas Igrejas locais. Se não, vejamos. Tomem os senhores padres suas agendas em mãos: quanto tempo dedicam às celebrações, sobretudo da Eucaristia, e quanto tempo dedicam à convivência gratuita com seu povo, ao acompanhamento e formação continuada das pessoas que têm o papel de animação e formação junto a grupos de crianças, de jovens, de adultos, de idosos, se é que existem?… Com que tempo e empenho, com que cuidados e criatividade se dedicam, efetivamente, a preparar, com sua gente, momentos fortes como a Quaresma, com sua Campanha da Fraternidade, o Mês Bíblico, o Advento, como oportunidades excelentes de renovação da consciência, da vida e do compromisso cristãos?… Oxalá tenham encontrado tempo, pelo menos, para preparar com as equipes litúrgicas das comunidades sob sua responsabilidade a celebração dominical da Eucaristia ou da Palavra, de modo a fazer dela, antes de tudo, um momento significativo de evangelização!…

Quem tem levado a sério o que há pouco, em Aparecida, “constataram” nossos bispos: “… o escasso acompanhamento dado aos fiéis leigos em suas tarefas de serviço à sociedade, particularmente quando assumem responsabilidade nas diversas estruturas de ordem temporal. Percebemos uma evangelização com pouco ardor e sem novos métodos e expressões, uma ênfase no ritualismo sem o conveniente caminho de formação, descuidando outras tarefas pastorais. De igual forma, preocupa-nos uma espiritualidade individualista”[5] .

Ah! Quanto estamos distantes da visão e da prática de Paulo, que se considerava “ministro (liturgo) de Jesus Cristo”, não porque andasse batizando ou presidindo celebrações eucarísticas, mas, antes de tudo, “prestando um serviço sacerdotal (liturgia) ao evangelho de Deus, para que os pagãos se tornem uma oferenda bem aceita, santificada no Espírito Santo” (Rm 15,16), ele, que insistia com tanta solicitude: “Eu vos exorto, irmãos, pela misericórdia de Deus, a vos oferecerdes em sacrifício vivo, santo e agradável a Deus: este é o vosso verdadeiro culto. Não vos conformeis com este mundo, mas transformai-vos, renovando vossa maneira de pensar e julgar, para que possais distinguir o que é da vontade de Deus, a sabe, o que é bom, o que lhe agrada, o que é perfeito” (Rm 12,1-2).

Aliás, qualquer pessoa que se dedique a ler com sincera atenção e cuidado as páginas do Evangelho, dos 4 Evangelhos, perceberá que são relativamente poucos os momentos em que encontramos Jesus e os seus discípulos participando de algum tipo de celebração litúrgica… Encontrar-se com as pessoas em plena vida, no cotidiano de suas alegrias ou, sobretudo, de suas dores; fazer de cada encontro uma oportunidade de escuta e de serviço; servi-las de alguma maneira, de questioná-las e anunciar-lhes a boa nova do Reino, eis o “seu forte”. O resto vem por consequência. Enquanto isso, são frequentes os momentos em que aparece relativizando, questionando, desqualificando mesmo, as práticas religiosas e celebrativas do seu povo. Delas, ele próprio participa, mas não se engana. Ao perceber o tanto de manipulação da fé do povo, que nelas existe, por parte dos líderes religiosos, para fins de dominação, da manutenção de privilégios e de exploração financeira, não hesita em denunciar tão perversa hipocrisia, a qual ele não perdoa, antes, condena de forma constante e contundente (cf., por exemplo, Mt 23). E essa crítica que faz à religião, tal como é organizada, praticada e mantida pelas autoridades religiosas da sua terra e do seu tempo, foi a peça principal do processo que lhe valeu a morte. Qualquer semelhança com o que ocorre hoje não é mera coincidência!

Enfim, o que está em jogo, quando se trata seriamente de celebrar a Liturgia, não é a própria celebração litúrgica, mas, sim, e antes de tudo, o modelo de vida eclesial, a qualidade de vida cristã que lhe antecedem e dão conteúdo e substância: o Mistério Pascal desdobrando-se no dia-a-dia das pessoas e comunidades, na sua existência cotidiana; a entrega da própria vida, em Cristo, como realização da vontade do Pai, no serviço generoso da humanidade, isto é, o exercício existencial do Sacerdócio cristão. Só assim seremos “honestos com Deus”, alguém já nos alertava, faz tempo[6]. De outra forma, estamos colocando o carro na frente dos bois e alimentando a alienação que justifica a célebre e clássica crítica feita à religião como “ópio do povo”…

Até quando vibraremos com a onda neopentecostal e nos alegraremos com fazer de nossos rituais, no melhor dos casos, mero entretenimento religioso?… Até quando seremos coniventes com a vergonhosa manipulação da religiosidade das massas, iludidas em sua boa fé, relegadas ao anonimato e à massificação, por conta de interesses questionáveis, quando não de todo abomináveis?…

Essas coisas o Seminário de Liturgia precisaria ter discutido, em caráter de urgência. E tinha tudo para dar certo. Mas as contribuições escritas, solicitadas previamente aos participantes e apresentadas nos minisseminários, onde foram apresentadas, pouco ou nenhum peso tiveram no curso e nos resultados finais do Seminário. Diga-se o mesmo das intervenções em plenário. Aliás, se pelo menos se tivesse levado em conta e a sério quanto foi colocado por qualificados palestrantes em termos de retrospectiva sobre a Liturgia nos documentos das 5 Conferências Episcopais Latino-Americanas!… A concluir pelo que se ouviu como síntese apresentada na última sessão, nada disso teve maior importância. O que vali mesmo era o “artigo importado”! No entanto, foi nessas outras falas e pontos de vista que as preocupações acima expressadas apareceram.

Aliás, em termos de dinâmica, o que prevaleceu foi o “antigo padrão”, a dinâmica “bancária” de sempre, um “diálogo de surdos”, mas sequer com a “linguagem dos sinais”, porque o que importava era dizer e não, primeiramente, escutar. Uma bela oportunidade perdida, que poderia ter sido bem aproveitada, como urgia, para uma arrancada pastoral, realista e séria, que possibilitasse um novo alento à vida eclesial e litúrgica, 50 anos depois.

[1] Texto conclusivo da V Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe, Aparecida SP, 13-31.05.2007. Edições CNBB – PAULUS – Paulinas, respectivamente, São Paulo e Brasília, 2007.

[2] DA, 2ª parte, nº 61-155

[3] DA, introdução à 1ª parte, nº 19; capítulo 2º, especialmente nº 33-97.

[4] DA 307-310.

[5] DA 100, c.  O grifo em negrito é do autor do artigo.

Obs: Reginaldo Veloso de Araújo é Presbítero das Comunidades Eclesiais de Base – CEBs, no Morro da Conceição e Adjacências, Recife-PE.
Compositor litúrgico, com diversos CDs gravados pela COMEP/Paulinas e pela PAULUS.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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